Revista geo-paisagem Vol. 1, número 2, 2002
Julho/dezembro de 2002
ISSN Nº 1677 – 650 X |
Onde nasceu a cidade
do Rio de Janeiro ?
( um pouco da história do Morro do Castelo )
Paulo Cezar
de Barros[1]
Resumo
O
trabalho desenvolve uma análise sobre a origem da cidade do Rio de Janeiro. A
partir de diferentes fontes, entrevistas e fotografias, o autor pode trazer uma
valiosa contribuição ao tema.
Palavras-chaves
: Rio de Janeiro, origem, Morro do Castelo
Abstract
The
papper aim to understand the beginning of the Rio de Janeiro City. By
differents approachs, interviews, fotographs, the author gives an important
contribution about the matter.
Keywords:
Rio de Janeiro, beginning. Morro do Castelo
Introdução
“Os morros têm um recorte particular
no horizonte do Rio de Janeiro. Entre o
mar e as montanhas, permeando charcos e lagoas, sua importância para a vida e a
constituição da cidade transcende sua mera conformação geográfica”.
(Márcia
Frota Sigaud)
Onde nasceu a cidade do Rio de
Janeiro? Por que o Rio de Janeiro já
nasceu com status de cidade? Por que o primeiro núcleo urbano se
estabeleceu num morro? Por que esse
núcleo foi arrasado? Será que o
carioca, até mesmo o mais apaixonado pelo Rio, conhece e valoriza a história da
sua cidade?
Este trabalho pretende levar à tona
um tema para reflexão, a saber: a memória da cidade do Rio de Janeiro no que
concerne ao seu primeiro núcleo urbano, o Morro do Castelo e a sua
evolução. Berço da cidade, o Morro foi
escolhido por Mém de Sá em 1567 para abrigar os cento e vinte portugueses que
haviam participado da expulsão dos franceses calvinistas comandados por
Villegaignon que aqui fundaram a França Antártida na Ilha de Seregipe, hoje
Ilha de Villegaignon e onde está localizada a Escola Naval.
Derrotada a aliança franco-tamoia,
passou-se então a fase de conquista do território. Os primeiros moradores começaram a abandonar a praia entre o
Morro Cara de Cão e o Pão de Açúcar, local de fundação da cidade, e ocuparam o
ponto mais estratégico em torno da Baía: uma elevação encravada na planície
encharcada, denominada inicialmente de Morro de São Januário. Após sucessivas
denominações: Descanso, Alto da Sé, Alto de São Sebastião, o Morro passou a ser
chamado de Castelo. Assim nasceu a
nossa cidade, delimitada e espremida em um morro com feições quase insular.
Este trabalho tem como tema geral a
evolução urbana do Rio de Janeiro. O estudo da evolução urbana é analisado por
geógrafos, historiadores, antropólogos, arquitetos, urbanistas, técnicos do
patrimônio cultural, economistas e sociólogos.
Esse caráter transdisciplinar fomenta debates a partir de inúmeras
abordagens, enriquecendo e motivando ainda mais o estudo sobre a cidade e meios
de preservar o seu passado.
Neste contexto, a geografia além de
estudar a organização das cidades através
dos agentes sociais produtores do espaço urbano, pode desempenhar um papel
importante no resgate e na valorização do passado das cidades brasileiras.
Ao iniciarmos o estudo desse tema,
percebemos que poucas cidades no mundo tiveram a sua paisagem natural tão
modificada como a do Rio de Janeiro. O dissecamento de lagoas, a drenagem de
pântanos e mangues, os aterros sobre o mar, a construção de túneis, o desmonte
de morros etc. mostram como a segunda natureza desta cidade foi sendo
lentamente construída e modificada a partir de uma árdua intervenção humana.
Denominado inicialmente de Morro do
Descanso devido a árdua conquista que os portugueses tiveram para ocupá-lo,
essa elevação fazia parte de um conjunto de vários morros cristalinos (S.
Bento, Providência, Senado, Conceição e S. Antônio) que estavam encravados na
planície encharcada e isolados dos maciços litorâneos. Composto por rochas gnáissicas bastante
desgastadas pelo intemperismo químico, o Castelo ocupava uma área de cento e
oitenta e quatro mil metros quadrados.
Sua altitude era de 63 metros, e seus limites eram as atuais Avenida Rio
Branco (antiga Avenida Central), ruas Santa Luzia, Misericórdia e São José.
Em
1921, o então Prefeito do Distrito Federal, Carlos Sampaio, decretou o fim do
Morro. O Castelo não resistiu à modernização do centro da cidade, pois era
visto como o símbolo degradado do condenado passado colonial português.
Os discursos higienista e estético
que legitimaram as reformas de Passos e Sampaio transformaram as áreas centrais
através de várias “cirurgias” urbanas, onde se concentravam as camadas
populares da cidade. Entretanto, para
os trabalhadores, interessava residir no centro pois era ali que se concentrava
a oferta de emprego. Além disso, o
custo e precariedade dos sistemas de transportes, contribuíam para a sua resistência
em permanecer na área central.
Higienizar e modernizar a cidade
significavam sobretudo, eliminar os lugares infectos e sórdidos, o desmazelo, a
imundície e as residências coletivas (cortiços e cabeças de porco) em que
habitava a maioria da população.
A “modernização destruidora” do
Estado visava eliminar não só a cidade colonial marcada por ruas estreitas e
sinuosas, como também objetivava romper com os valores culturais relacionados
ao período imperial, valorizando a inserção cultural e econômica européias,
principalmente pela absorção da visão do mundo francês. Construir assim um novo centro mais moderno,
significaria a construção simbólica de um novo país, instaurado pela ordem
Republicana.
Entretanto, as ações da República
orientadas pelo ideário progressista não atenderam ao bem estar geral da
sociedade. Assim, as classes populares foram as mais afetadas com as renovações
urbanas do início do século XX. Com o
arrasamento do Castelo e do bairro da Misericórdia, localizado no sopé do
morro, desapareceram da área central da cidade mais duas áreas residenciais
pobres que haviam resistido à reforma Passos. Somente no Castelo, residiam
aproximadamente cinco mil pessoas e, especialmente para elas, o desmonte do
morro produziu um impacto extraordinário, forçando a mudança de residência.
As conseqüências sócio-espaciais do
arrasamento do Morro do Castelo foram pouco estudadas pelos geógrafos. Neste sentido, acreditamos que este trabalho
possa ser uma pequena mas importante contribuição para resgatar a memória e a
identidade da cidade do Rio de Janeiro, pois, segundo Núbia Melhen Santos
(2000), não podemos esquecer o Morro do Castelo sem antes conhecê-lo.
O INÍCIO DA OCUPAÇÃO
“Escolhi hum sítio que parecia mais conveniente para hedificar nelle a cidade de São Sebastião o qual sítio hera de um grande mato espeço cheo de muitas arvores grossas em que se levou asaz de trabalho em as cortar e alimpar o dito sítio e hedificar huma cidade grande serquada de muro por sima com muitos baluartes e fortes cheo de artelharia, e fiz a igreja dos padres de jhesus onde agora residem telhada e bem consertada
(Mem de Sá)
Para iniciar a análise
da história oficial do Morro do Castelo, escolhemos a descrição de Mem de Sá
sobre a Colina que havia tomado para abrigar o primeiro núcleo urbano do Rio de
Janeiro, publicada no Jornal do Brasil
de 20 de janeiro de 1965. O sítio mais conveniente, segundo Mem de Sá, deveria
estar em uma elevação, pois era naquele momento, o ponto mais salubre e de
melhor observação para a defesa da recém-fundada cidade de São Sebastião do Rio
de Janeiro.
Desta forma, a história da ocupação
do Morro do Castelo está diretamente associada à defesa do território português
contra as invasões francesas no séc. XVI. Antes da ocupação desta Colina, os cento
e vinte portugueses, sob comando de Estácio de Sá, construíram um povoado
localizado na várzea entre os morros Cara de Cão (hoje S. João) e Pão de
Açúcar. A Coroa Portuguesa se sentido ameaçada pela presença dos franceses na
Baía de Guanabara, apressou a fundação da cidade de São Sebastião do Rio de
Janeiro em 1° de março de 1565, cujo nome foi uma homenagem ao Rei de Portugal, D.
Sebastião. Embora a povoação de Vila Velha fosse apenas um precário acampamento
militar, o Rio de Janeiro já nasceu como cidade, não recebendo anteriormente a
denominação de povoado e vila.
Portanto, o sítio original da
fundação da cidade foi escolhido claramente por motivos militares, ou seja,
defender o território como já citado. Acontece que este ficou pequeno para
abrigar a população[2]. Após a
morte de Estácio de Sá e com a derrota dos franceses, Mem de Sá resolveu
transferir a povoação mais para o interior da baía em 1567. Diante da função
eminentemente defensiva e de acordo com a própria tradição portuguesa, foi
instalado um sítio em acrópole, ou seja, em uma elevação que favorecesse a
vigília e a defesa[3].
Foi escolhido o morro de São
Januário, depois chamado de Descanso e Castelo, nome dado devido à fortificação
aí construída, que vista de baixo se assemelhava a um castelo medieval[4].
É importante frisar que a escolha do
sítio inicial na planície para a fundação da cidade, deveu-se à ocupação dos
franceses no interior da baía. O Castelo poderia ter sido esse sítio inicial,
mas a presença dos franceses na Ilha de Seregipe, atual Villegaignon, impedia
que os portugueses ocupassem logo essa elevação para defender o território.
Desta forma, percebemos que a
geografia do Rio de Janeiro contribuiu para a função defensiva do território.
Com a boca estreita (1.600 m) e elevações próximas (maciços litorâneos), além
da existência de várias enseadas gerando excelentes ancoradouros, a Baía de
Guanabara é considerada por muitos autores como uma fortificação natural.
A ameaça representada pela aliança
entre franceses calvinistas e índios Tamoios na Guanabara, foi fundamental para
a fundação da cidade do Rio de Janeiro. Nesse contexto, o Morro do Castelo
representava um ótimo sítio defensivo, um posto de observação privilegiado que
permitia guardar a Guanabara contra novas tentativas de fixação dos inimigos
franceses e também contra a ameaça dos Tamoios, índios nada simpáticos aos
portugueses e que tinham medo das colinas, associando-as a coisas demoníacas[5].
Delgado de Carvalho (1988), enfatiza
que o fator agrícola também influenciou na ocupação inicial das encostas e
várzeas orientadas para leste, ou seja, voltadas para o sol nascente. Esse
fator foi importante para o desenvolvimento das lavouras e a conseqüente
estabilização e extensão da posse primitiva. Assim, as planícies entre os
morros foram durante muito tempo, segundo o autor, o celeiro do núcleo de
povoamento.
Logo no primeiro ano de ocupação, o
Morro ganhava suas primeiras construções: o Forte de São Januário rebatizado
mais tarde de São Sebastião. Localizado na parte posterior da colina e feito
como as demais edificações, de pedra e óleo de baleia, as paredes internas
chegavam a ter um metro de espessura e sua aparência era a de um castelo. Foram
construídos fossos, muros e baluartes (muralhas), a igreja e o colégio dos jesuítas,
armazéns, casas para os primeiros moradores, a Casa da Câmara, a Cadeia e a
Igreja de São Sebastião, o primeiro templo religioso do Rio, que se assemelhava
a uma fortaleza[6]. Para a
defesa, foi construído um conjunto de três fortes: o Baluarte da Sé e a
Fortaleza de São Sebastião, localizados no morro, e a Bateria de Santiago, na
ponta da Piaçava. Essa, apontava para o mar, dividindo as praias de Santa Luzia
e da Piaçava.
Por que o Castelo foi o morro
escolhido, já que existiam outras opções (Glória, São Bento, Pasmado e
Viúva)? Segundo Lysia Bernades (1995),
atendendo a função escolhida, o Morro do Castelo era o que apresentava as
melhores condições. Com uma altitude em torno de 60 metros, o Morro tinha um topo
relativamente plano que permitia construções[7].
Todos os outros morros citados tinham vista para a baía de Guanabara,
entretanto, o Castelo era o único que tinha uma vista ampla da sua entrada,
além da proximidade com a ilha de Seregipe, onde os franceses haviam fundado a
França Antártida. O Castelo estava cercado por pântanos e lagoas, sendo
portanto, um promontório quase insular, dificultando o seu acesso, logo
facilitando a sua defesa. Além disso, a vertente oeste, voltada para o
interior, era protegida pela aldeia dos índios Temiminós, aliados dos
portugueses e inimigos dos Tamoios. O Morro tinha uma fonte de água doce, que
contribuiu para a escolha de Mem de Sá e, sua inclinação favorecia o escoamento
dos detritos. Os portugueses jogavam o lixo nas ruas e as águas das chuvas
tratava de levá-lo encosta abaixo.
Em 1567, ano da segunda fundação da
cidade e posse definitiva do território através da ocupação do Castelo, o Rio
tinha seiscentos moradores, todos morando no Morro[8].
A cidade era habitada por frades, monges, burocratas, soldados e índios.
Segundo o Engenheiro José de Oliveira Reis (1986), o Castelo não era também um
local apropriado para o desenvolvimento da cidade, embora fosse o mais
estratégico dos morros. A expansão da
urbe foi feita pela conquista da planície embrejada a custa de inúmeros
aterros.
EM DIREÇÃO À PLANÍCIE
“As primeiras cidades do Brasil começam pelos morros e só tarde descem
à planície (...). Essa é a prudência dos fundadores no século XVI e no seguinte
que foram uma luta pela posse da terra”.
(Márcia
Frota Sigaud)
A recém criada cidade não demorou a
se espalhar em direção às planícies que circundavam a Colina. Destinada a ser
marítima, a cidade não poderia ficar confinada no alto da colina (GERSON,
2000).
No início do século XVII, a
população do Rio de Janeiro era de 4 000 habitantes, entre índios, a maioria,
portugueses e negros africanos escravizados e introduzidos para trabalhar nos
engenhos de açúcar.
Com o crescimento da economia e da
atividade portuária, a cidade expandiu-se além do núcleo do Morro do Castelo. A
“nobreza carioca” desceu pela ladeira da Misericórdia, único acesso ao Morro no
início da sua ocupação[9].
Segundo NONATO (2000), não era fácil morar num morro que tinha apenas uma
nascente de água e onde gêneros alimentícios e material de construção tinham
que ser levados nas costas, a duras penas. Segundo Morales De Los Rios, o Morro
do Castelo não tinha água potável, sendo uma das causas do seu abandono pela
população[10]. Assim, percebemos que a pequena fonte de
água que existia no Morro era insuficiente para abastecer a maioria dos
moradores.
Para FRIDMAN (1999), a descida do
Morro do Castelo foi decorrente também de interesses dos principais produtores
de riqueza: donos de engenho, produtores agrícolas, donos de armazéns e dos
mercados. Estes, preconizavam o
crescimento da cidade na várzea a fim de expandirem os seus negócios.
Do sopé do morro nasceram as
primeiras ruas da cidade. A várzea era arenosa e em grande parte encharcada com
lagoas e manguezais. Trilhas foram
construídas e posteriormente se transformaram em ruas. Ruas como da Ajuda e Misericórdia
contornavam a base para fugir dos terrenos úmidos. A rua Direita (atual 1° de Março), prolongamento da Misericórdia, ligava o Castelo ao Morro de
São Bento. Segundo GERSON (2000), com a
exceção da rua Direita, as primeiras ruas não foram planejadas de “ponta a
ponta”. Desta forma, as casas eram
construídas de acordo com as necessidades imediatas e só depois as ruas eram
construídas, em expansão lenta, sem calçamento e nem sempre em linha reta[11].
Se fizermos uma abordagem sobre os
“donos” da nova cidade, verificamos que os grandes proprietários das terras do
Rio de Janeiro eram, segundo FRIDMAN (1999), a coroa portuguesa, um pequeno
número de nobres e as ordens religiosas.
Neste contexto, a cidade foi dividida entre várias ordens religiosas.
Durante o período colonial, a organização espacial da cidade do Rio de Janeiro
estava diretamente relacionada à presença e dominação dos religiosos. Ainda segundo a autora, cada ordem,
irmandade e confraria se apropriava de uma parcela do espaço urbano. Essa
dominação tinha uma base econômica através da produção (agropastoril e
serviços), além da acumulação de propriedades e uma base ideológica, através da
influência da religião católica. Assim, a geopolítica colonial estava assentada
numa relação Estado/Igreja.
“Neste campo da relação
Igreja/Estado, na falta de normas civis específicas para a conformação urbana,
as leis eclesiásticas tornaram-se definidoras do estabelecimento das atividades
e dos caminhos da expansão territorial.
O clero impôs normas expressas para os assentamentos dos edifícios e das
propriedades sagradas. O uso do solo
carioca mostrou, portanto, um jogo de forças que teve expressão jurídica e
política” (FRIDMAN, 1999, p. 13).
Neste contexto, o Morro do Castelo
pertencia aos Jesuítas. Esta ordem foi a maior proprietária de terras no Rio de
Janeiro até sua expulsão em 1759. As demais ordens: franciscanos, carmelitas e
beneditinos localizaram-se inicialmente na várzea. Em 1587, Manoel de Brito,
Capitão de Infantaria e Fidalgo da Casa Real doou a sesmaria de São Bento para
os monges beneditinos. Os franciscanos ficaram no sopé do Morro do Castelo até
1607, quando decidiram a transferência para o Morro de Santo Antônio reservado
aos carmelitas, que chegados em 1590, não o aceitaram (FRIDMAN, 1999).
É importante frisar que essas ordens
religiosas se transformaram num importante agente produtor de espaço, induzindo
os vetores da expansão urbana carioca. Segundo FRIDMAN (1999), os religiosos eram
responsáveis pelos referenciais diários da população: habitação, saúde,
produção de alimentos, educação, melhoramentos urbanos (construção de ruas,
saneamento, abastecimento de água etc.). Mais adiante, analisaremos a expulsão
dos Jesuítas e suas complicações no espaço do Morro do Castelo.
Com a expansão urbana e a
conseqüente descida para a várzea, o Morro do Castelo passou a ter três
acessos: a Ladeira da Misericórdia, já citada, a Ladeira do Castelo ou do
cotovelo e a Ladeira da Ajuda ou Poço do Porteiro (REIS, 1986). A primeira,
ligava o Morro à praia do lado da Ponta do Calabouço. A segunda, isto é, a do
Castelo, alcançava a planície pela Rua São José. A ladeira da Ajuda, ligava a
parte oeste do Morro às proximidades da atual rua México[12].
Essa última foi destruída na primeira intervenção ocorrida em 1906 para a
construção da Avenida Central.
A cidade descia e com ela algumas
instituições. A Casa da Câmara e Cadeia foram transferidas para a várzea, que
também abrigava a Igreja do Carmo e o cemitério, localizado próximo à Santa
Casa de Misericórdia. A Bateria de Santiago, na Ponta da Piaçava, foi ampliada
a partir de 1603 e tornou-se a Fortaleza de Santiago, atual Museu Histórico
Nacional. Em 1693, passou a abrigar uma prisão para escravos, que anteriormente
ficava no prédio da Cadeia, localizada no alto do morro. Daí o nome “calabouço”
por designar a fortaleza e a ponta onde se localizava.
Além do Castelo e do São Bento,
foram ocupados logo depois, os morros da Conceição e Santo Antônio, formando o famoso
“quadrilátero”, onde esses morros delimitavam a área urbana até meados do
século XIX[13]. A planície
encharcada começava a ser aterrada. A lagoa da Carioca, que separava os Morros
do Castelo e de Santo Antônio e a lagoa do Boqueirão, onde se localiza atualmente
o Passeio Público, começaram a ser dissecadas. Percebemos, deste modo, que além
da função defensiva, a ocupação inicial dos morros se deve também à própria
insalubridade da planície. Os morros eram naquele momento, o melhor e o único
local para a ocupação e o povoamento, já que as planícies que os circundavam
eram praticamente embrejadas. Desta forma, apesar da questão estratégica Ter
sido determinante, não podemos minimizar a questão sanitária para entendermos a
ocupação do Morro do Castelo.
Portanto, como já citado, no final
do século XVI, com o rápido crescimento da cidade, a população começava a
descer o Morro do Castelo. A partir do século XVII, a Colina passou a perder
influência diante do comércio marítimo crescente, que transformou o porto e as
imediações da atual praça XV em centro administrativo e econômico do Rio
colonial.
Desta forma, a mudança da função da
cidade, de militar para portuária, corroborou para “descida” do Castelo. Além
do tradicional quadrilátero, a cidade começava a mover os seus “tentáculos” em
direção ao interior. As principais
edificações, como o Forte ou Castelo de São Sebastião, que batizara a colina, o
Colégio dos Jesuítas, fundado por Anchieta e Nóbrega, e as casas dos primeiros
colonizadores estavam em processo de deterioração; e as estreitas e tortuosas
vielas do morro passaram a abrigar uma população menos favorecida que ficou
fora da distribuição de sesmarias, principalmente pescadores. A Igreja de São Sebastião, por exemplo,
ficou praticamente esquecida pelo povo carioca. A falta de fiéis, levou os padres a recrutar os escravos para
assistir as missas. No século XVI, as mulheres só saiam de casa para ir à
missa, e a movimentação no morro ficava por conta dos dias de procissão.
Com o êxodo da elite rumo à planície,
a decadência do Castelo tornou-se inevitável. No século XVII, o morro abrigava
uma população marginal e, apesar de guardar relíquias históricas, era
desprezado pela maioria dos cariocas.
Com a exploração do ouro em Minas
Gerais, a cidade do Rio de Janeiro passou a ganhar importância como o principal
porto de embarque do metal para Portugal. A riqueza gerada atraiu duas
expedições francesas, a de Duclerc em 1710, mal sucedida, e a de Duguay-Trouin,
no ano seguinte, que saqueou a cidade e tornou urgente a revitalização dos
fortes e a melhoria da função defensiva. Em 1762 foi construída a Casa do Trem,
próximo à Fortaleza de Santiago, destinada à guarda do armamento (trem de
artilharia) das tropas enviadas por Portugal. Posteriormente, foi construído junto
à Casa do Trem, o Arsenal de Guerra, destinado à fabricação de munições e ao
reparo de armas. Segundo KESSEL (2000), o entorno da área hoje ocupada pelo
Museu Histórico Nacional passou a abrigar logradouros cuja toponímia evocava as
funções bélicas e defensivas: os becos da Batalha, do Calabouço, do Quartel, do
Trem e dos Tambores.
Um capítulo marcante na história do
Morro do Castelo foi, sem dúvida, a expulsão da Ordem dos Jesuítas durante o
governo de Marques de Pombal, no século XVIII. Segundo o historiador Nireu
Oliveira Cavalcanti[14],
a expulsão dos jesuítas não pode ser justificada apenas pela ordem de Marques
de Pombal, considerado um anti-clerical. Na verdade, a expulsão interessava à
Igreja Católica, já que essa Ordem estava ficando muito rica e independente do
Vaticano. A expulsão dos jesuítas do Morro do Castelo gerou muitas lendas na
população. Tesouros teriam sido enterrados nos seus lendários subterrâneos
durante o rápido despejo dessa Ordem. É interessante frisar que essa lenda foi
absorvida inclusive pelas classes dirigentes, a ponto que as possíveis riquezas
lá encontradas serviriam como garantia às empresas que estivessem a serviço do
desmonte. Essa visão, aceita por grande parte da população, acabou contribuindo
para legitimar o arrasamento.
A expulsão dos jesuítas em 1759
culminou com confisco de seus bens, cujas terras agrícolas e urbanas passaram
ao patrimônio do Estado ou foram vendidas em leilão (FRIDMAN, 1999). Em relação
às propriedades jesuíticas no Morro do Castelo, segundo a autora, o Estado as
doou à Santa Casa de Misericórdia.
Mesmo com o abandono do Castelo, que
aliás, ao nosso ver, é um termo muito forte, mas que é muito utilizado por
vários autores que estudam a área, o Morro ainda possuiu por muito tempo,
função estratégica. O telégrafo e o Observatório Astronômico são exemplos da
refuncionalização do Castelo não só com fins científicos, mas também com fins
militares. Do morro, por exemplo, se davam os avisos de incêndios na cidade, o
que prova que o sítio urbano era muito pequeno. Além disso, a fortaleza de
Santa Cruz, localizada na entrada da Baía, passava para o Castelo, através de
sinalizações com bandeiras, o tipo e a nacionalidade do navio que estava
entrando no porto. Da Colina, as informações eram passadas à sede do governo,
na Praça XV.
A transferência do Observatório
Militar para a torre da igreja e parte do convento dos Jesuítas no século XIX
gerou muitas controvérsias. A instalação do Observatório, segundo a visão de
alguns militares, deveria ser feita no Morro da Conceição. A justificativa se
devia à precária situação geológica do Morro do Castelo. A instabilidade do
terreno aliada às enxurradas e desmoronamentos, ainda mais acelerados com o
desmatamento, e a própria inadequação das instalações do edifício à sua nova
função, dificultavam as pesquisas científicas[15].
Portanto, como nos lembra KESSEL
(1997), o Morro do Castelo é parte inseparável da vida diária no Rio Imperial:
“Que horas são?, Qual é a nau
que aponta no horizonte? Há incêndio? Vamos à missa? Procuremos uma
rezadeira... Os laços se estreitam em 1862: em presença do Imperador D. Pedro
II, exumam-se os restos de Estácio de Sá, enterrados desde 1583 na Igreja de S.
Sebastião, que em virtude de um temporal havia sofrido sérios danos no ano
anterior. Os membros do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro assistem à cerimônia, que marca a confirmação
do liame entre a colônia, berço do Rio de Janeiro, e o túmulo de seu fundador. Lá está também o padrão quinhentista de
Pedra com as quinas portuguesas, marco da fundação da cidade. Carregado de tradições, lugar de memória e
devoção sacra, para onde a cada momento se voltam os olhos dos cariocas, como é
possível que se trame a sua ablação? Mas assim é”[16].
(KESSEL, 1997, s/p).
Esta citação confirma a nossa
crítica à questão do “abandono” do Castelo”.
Mesmo abandonada pelas elites, a Colina ainda teve um importante papel
na vida diária dos cariocas, mesmo após o êxodo do Morro pelas elites.
DA CONDENAÇÃO AO ARRASAMENTO: VENTILAR ERA PRECISO
Desde o século XVIII, o Morro do
Castelo foi alvo de inúmeros pareceres técnicos ligados aos campos da medicina
e da engenharia. Segundo esses pareceres, o arrasamento dessa Colina era vital
para a melhoria do clima e da circulação dos ventos na área central do Rio de
Janeiro. O Morro contribuía segundo os técnicos, com a propagação das epidemias
que assolavam os cariocas e amedrontavam os estrangeiros.
O médico José Maria Bontempo em sua Memória sobre algumas enfermidades do Rio de
Janeiro (apud Nonato, 2000)
aconselhava a demolição não só do Morro do Castelo, como também do Morro de
Santo Antônio. Neste trabalho, Bontempo chegou a enfatizar que o administrador
responsável pelos desmontes ficaria com o nome eternizado na história da
cidade.
Dom José Joaquim da Cunha de
Azeredo, bispo de Pernambuco e Procurador do Senado da Câmara em Lisboa, no Ensaio Econômico Sobre o Comércio de
Portugal e suas Colônias (apud
NONATO, 2000), enfatizou a importância do desmonte do Castelo, que impedia a
circulação dos ventos vindos do mar, tão necessários na região tropical. Este,
foi o primeiro estudo completo sobre a idéia de arrasar a colina histórica.
Segundo Dom José, do desmonte se criaria uma “nova cidade” até a Ilha de
Villegaignon, e o ouro extraído do subsolo, deixado pelos jesuítas, pagaria os
proprietários dos imóveis desapropriados.
O famoso episódio conhecido como
“Águas do Monte”, de 1811, ou seja, a grande enxurrada que provocou
desabamentos de encostas do morro, com numerosas vítimas, também concorreu para
incentivar os defensores da idéia do desmonte.
No século XIX, as várias tentativas
para o seu arrasamento foram frustradas. A cidade se expandia e a colina
agonizava, mas resistia. Para facilitar a comunicação entre Botafogo e
Laranjeiras com a área portuária, foi alargada a estreita passagem entre a rua
da Ajuda e a Misericórdia, em frente à Igreja de Santa Luzia. No início do
século XX, a construção da Avenida Central rasgou o Centro do Rio. Foram feitos
cortes no morro em 1904 para a abertura da Avenida Central, hoje Rio Branco, e
para as construções da Biblioteca Nacional, do Museu Nacional de Belas Artes e
do Supremo Tribunal Federal.
A demolição veio com a administração
do prefeito Carlos Sampaio. Assumindo em 1920, o engenheiro tinha como objetivo
sanear a cidade e prepará-la para as comemorações do 1° Centenário de Independência do Brasil, realizando obras de saneamento
e embelezamento que culminariam numa exposição internacional no local do
arrasamento do Castelo.
A Colina histórica era vista por
Carlos Sampaio como um grande problema de razões ligadas à estética, higiene e
a engenharia. O morro era comparado a um “quisto” ou uma “cárie” que precisava
ser extraída para por fim às moléstias que infectavam a cidade. Era necessário,
segundo o prefeito, ventilar a área central:
“Com a forma de um rim, voltando
sua convexidade para a única entrada da nossa imensa bahia e com sua maior
dimensão normal á direção dos ventos reinantes, esse monte agravava por esse
motivo inconvenientemente precedentemente indicado e produzia, por seu aspecto
inesthético e asqueroso uma má impressão ao viajante, que, ao entrar na
esplendida bahia do Rio de Janeiro, tinha a mesma sensação que se teria ao ver
uma linda boca com o dente da frente cariado” (SAMPAIO, 1924, p. 4).
Em seu livro: Memória Histórica: Obras da Prefeitura do Rio de Janeiro, Carlos
Sampaio (1924), além de condenar o Castelo, visto como o morro mais nocivo à
saúde do Rio de Janeiro, elaborou os pareceres técnico e financeiro que justificavam a importância daquela obra.
Algumas questões foram consideradas por ele como os “Problemas do Castelo”, a
saber: o desmonte; o destino a ser dado às terras e ao novo local; o sistema de
transporte a ser utilizado para o desmonte e a proteção do aterro contra as
águas do mar. Veja que em nenhum momento do seu livro, o prefeito se preocupou
em resolver a questão demográfica do morro. Afinal, para onde iria aquela
população que residia no Castelo?
Segundo Sampaio, no seu livro, foram demolidos quatrocentos e sessenta
prédios, cuja desapropriação ocorreu sem nenhuma reclamação.
Em relação às terras originadas do
desmonte, Sampaio, por questões financeiras, justificava o destino in loco, aterrando a orla até a ilha de
Villegaignon e a praia adjacente, a enseada da Glória.
Na época do desmonte, houve o
seguinte questionamento: Por que não arrasar o Morro de Santo Antônio ao invés
do Castelo? Era mais fácil tecnicamente e não criaria uma resistência maior em
relação à opinião pública. Carlos Sampaio justificava pela importância da
Colina Histórica. Para ele, qualquer prefeito poderia arrasar o Santo Antônio,
mas o Castelo dificilmente um administrador teria essa coragem. Além disso, com o desmonte, a prefeitura
ganharia com a utilização da valiosa área a ser aplainada e criada e ainda, em
suas próprias palavras: “Mostrar ao mundo
civilizado que o brasileiro também sabe trabalhar...”.
Quanto a vertente financeira do
desmonte, Antonio Nonato em Era Uma Vez o
Morro do Castelo (2000), enfatiza que não existe ainda uma pesquisa sobre o
quanto se gastou na obra. Mas é certo que houve um grande endividamento do
Estado. Vale lembrar que Carlos Sampaio foi acusado na época por corrupção, já
que no final do século XIX possuía uma empresa de Engenharia que tinha a
concessão do Estado para demolir o morro. Estudos mostravam que obras de
embelezamento no morro custariam bem menos, cerca de um terço do valor gasto no
desmonte.
É importante frisar que a opinião
pública e a imprensa ficaram divididas em relação ao projeto de desmonte.
Segundo VELLOSO (1998), a imprensa favorável à demolição do Morro usava
metáforas ao citar o Castelo.
Destacamos a da Revista Careta:
Se o trambolho do Castelo
Se projeta remover,
Afirmamos que é com certeza
Para o rei Alberto ver...[17]
Por outro lado, existiam aqueles que
se opunham à demolição. Dentro da imprensa carioca, destacou-se a campanha
feita pelo Jornal do Brasil, que propôs um projeto de urbanização dos morros do
Centro do Rio[18]. Dentre os
intelectuais opositores, o paulista Monteiro Lobato escreveu numa crônica: “a
colina seria a pérola maior do maravilhoso colar de pérolas carioca.” (apud VELLOSO, 1998, p. 32). Para ele, o carioca acostumado com a beleza
natural da cidade, não lhe dava o devido valor.
A IDEOLOGIA QUE ARRASAVA: ABAIXO PORTUGAL, VIVA A FRANÇA
A idéia de uma cidade imunda, pobre,
infecta de moléstias, de clima insalubre e repleta de analfabetos é analisada
por muitos autores como uma visão preconceituosa e determinista. É lógico que
existiam ambientes insalubres na cidade. Entretanto, a natureza dessa
insalubridade era fundamentada em pareceres pouco críticos. Afinal, o Rio de
Janeiro foi a segunda cidade do mundo a possuir esgoto sanitário e não podia-se
dizer exatamente que as grandes cidades do mundo na época primassem pela higiene
e limpeza.
Segundo Jorge Luiz Barbosa (1992),
as péssimas condições de vida da população pobre carioca corroborava para o
avanço das doenças que assolavam a cidade (varíola, febre amarela, tuberculose
etc.). Desta forma, a natureza dos ambientes malsãos na cidade do Rio de
Janeiro não poderia ser analisada pelo determinismo do clima quente e úmido,
ideologia que acabou legitimando o arrasamento da Colina. “Submetidos a viver
na tênue fronteira entre a precariedade e a indigência, os trabalhadores da cidade
do Rio de Janeiro lutavam diariamente contra a fome, contra a moléstia e contra
a civilização” (BARBOSA, 1992, p. 327).
Essa era a verdadeira natureza da
crise ambiental por que passou a cidade. Não era o Castelo o responsável pelas
moléstias e sim a pobreza e a exploração da classe trabalhadora.
Além disso, a República, recém
instaurada em 1889, precisava se legitimar no poder, atacando para isso, não só
o período colonial português como também a própria identidade da cidade do Rio
de Janeiro. Segundo o professor Carlos Lessa (2000), a República logo iniciou
estudos da região central, reservada à nova capital: “Parecia estar no subliminar da nascente República a
sinalização de repúdio à cidade imperial; expressaria um certo desamor pelo
Rio, considerado lugar contaminado por conotações coloniais e dinásticas
(LESSA, 2000, p. 183).
A ideologia destruidora dos
resquícios da cidade colonial e atrasada, colocava o Morro do Castelo na beira
da condenação, pois era essa colina, sem dúvida, o principal símbolo colonial
português na cidade.
“O novo regime teria que lidar,
não só com a organização de uma nova vida social e política, mas também com a
projeção de uma arquitetura simbólica do nacional, que marcasse a República com
a verdadeira entidade representativa da sociedade como um todo” (MOTTA, 1992,
p. 11).
Para MOTTA (2001) a República não
via com bons olhos o Rio de Janeiro. A
cidade era considerada agitada, politizada e cheia de símbolos coloniais:
“a assuada da massa popular do
Rio de Janeiro sempre assustou os governantes. A capital imperial foi
freqüentemente marcada por manifestações de rua, seguidas de quebra-quebras de
estabelecimentos comerciais, especialmente de portugueses...” (MOTTA, 2001, p.
50).
O Morro era a
fronteira nítida entre a cidade “colonial e atrasada” e a cidade “européia,
civilizada e moderna”. Muitos relatos da época enfatizam o contraste de
paisagens. Há metros do Teatro Municipal, recém construído, de estilo francês,
podia se ver uma paisagem bucólica na colina, onde pastavam cabras, além das
galinhas e dos famosos varais de roupas, paisagem humana marcante do Morro do
Castelo.
A reforma urbana promovida por
Pereira Passos, ao remodelar o Rio Antigo, deixou o morro do Castelo fora do
processo de modernização urbana. Tendo como referência o estilo de vida
francês, o modelo parisiense foi utilizado para consolidar a passagem da cidade
atrasada para a cidade moderna[19].
Além da remoção dos cortiços e a expulsão da população pobre do centro do Rio,
o não tratamento paisagístico no Morro do Castelo gerou um forte contraste de
paisagens, alimentando ainda mais o sentimento republicano de aversão ao estilo
urbano português.
Segundo JESUS (2000), Passos não
arrasou fisicamente a Colina, mas contribui para a sua condenação, pois
consolidou na cidade uma atmosfera de apologia à modernidade, além de
supervalorizar os terrenos vizinhos ao morro, fortalecendo ainda mais os
discursos a favor da demolição. O centro da cidade foi, deste modo, a área onde
Passos buscava a superação das feições coloniais da cidade velha, comparadas
com a doença e o atraso.
Para VELLOSO (1998), sempre que
havia uma discussão sobre a modernização da cidade, os portugueses não eram
poupados de comentários maldosos: “Lá vêm esses portugueses atrapalhando os nossos
caminhos” (VELLOSO, 1998, p. 33). Não podemos esquecer, que nesse contexto,
grande parte das propriedades do Rio de Janeiro e especialmente no Morro do
Castelo pertencia aos portugueses[20].
Em suma, as campanhas republicanas preconceituosas contra o passado colonial
português visavam “mudar a cara” do Brasil e o Morro do Castelo, nesse
contexto, era o símbolo mais nítido do Português.
JESUS (1998), nos lembra que o Morro
do Castelo passou no final da sua história oficial, por um processo de
turistificação. No século XIX, a Sé era
alvo de procissões no dia de São Sebastião.
Joaquim Manuel de Macedo em Um
Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro (1862), publicou uma espécie de guia
turístico da cidade onde elege oito áreas de visitação na cidade. Há um destaque
especial para o Morro do Castelo:
“com efeito, o telégrafo do
Castelo, com seu jardinzinho e seu pátio e sua fonte, e sobretudo, com a sua
feliz situação, avassalando a cidade do Rio de Janeiro e a magnífica baía de
Niterói, é um dos mais frequentados e estimados passeios da capital,
principalmente aos domingos e feriados (...)” (MACEDO, 1991, p. 254).
No referido trabalho, Macedo
estabelece um roteiro histórico-cultural do Morro do Castelo, destacando as
suas principais relíquias históricas: a Sé e o Complexo Jesuítico. Vejam como
ele achava importante visitar a casa dos primeiros “donos” da cidade do Rio de
Janeiro:
“Subir o Morro do Castelo,
percorrê-lo, estudar, embora muito rapidamente, a sua história e descer enfim
desse velho e desprezado capitólio da cidade do Rio de Janeiro, sem ter parado,
por alguns minutos ao menos, diante do antigo Colégio dos Jesuítas, fora ao
mesmo que ir a Roma e não visitar o papa” (MACEDO, 1991, p. 214).
Já no século XX, na Reforma Passos
houve a descoberta dos lendários subterrâneos do Castelo, conforme a citação
abaixo nos informa:
“a turma de trabalhadores das
obras da Avenida Central que, sob a direção do engenheiro Dr. Dutra de Carvalho
Filho, procede à destruição do morro do Seminário, fez na madrugada de hoje,
pouco antes de 1 hora, uma surpreendente descoberta. Na fralda do morro, já cortado numa grande parte, apareceu sob a
picareta, dos trabalhadores a boca de uma galeria... Vai se verificar,
finalmente, que fundo de verdade tem a tradicional versão da existência de
tesouros naquele morro.:” (Jornal do
Commércio de 27/04/1905 apud BARRETO,
1997, p. I ).
Segundo JESUS (1999), o governo
deixou exposta para visitação pública uma pequena amostra do que seria
supostamente a rede de galerias subterrâneas.
Por ser uma ordem rica, os jesuítas talvez tivessem guardado os seus
tesouros nas galerias, gerando lendas e curiosidades entre a população carioca.
Segundo BARRETO (1997), o Morro chegou a ter uma visitação diária em torno de
três mil pessoas. Apesar dos tesouros históricos do Castelo, a turistificação
não gerou forças para impedir o arrasamento da Colina.
O arrasamento do morro do Castelo
iniciou-se em novembro de 1920, com a instalação de uma máquina escavadora que
foi utilizada na demolição do morro do Senado, na área que corresponde hoje a
atual rua México (KESSEL, 2000).
Segundo MOTTA (1992), os recursos
que foram aplicados na demolição foram vultosos, necessitando a emissão de
papel moeda e de empréstimos externos. O ritmo dos trabalhos era bastante lento
no início do desmonte. Até dezembro de 1921, apenas 10% do morro havia sido
removido. Entretanto, com a negociação de um novo empréstimo de 12 milhões de
dólares, o equivalente a 93 600 mil contos e com a transferência das obras para
a Kennedy & Co., o uso intensivo da força hidráulica acelerou o ritmo do
desmonte. Por outro lado, os custos aumentavam proporcionalmente à aceleração
do desmonte. Em suma, ao longo do período das obras de demolição, o ritmo com
as técnicas empregadas variaram de acordo os fluxos de investimentos (MAIA,
1997).
A Exposição do 1° Centenário de Independência dependia diretamente dos trabalhos da
Prefeitura do Distrito Federal. Os pavilhões da Exposição seriam construídos em
aterros provenientes do desmonte do Castelo. A Exposição foi um evento
grandioso e buscou firmar uma determinada imagem de modernidade para o país,
como podemos verificar nesta citação:
“a exposição não teria somente o
caráter de uma vitrine dupla, onde os visitantes do exterior conheceriam a
riqueza e as potencialidades do país e onde os brasileiros teriam a
oportunidade de tomar contato com as maravilhas do estrangeiro; o espaço tomado
ao mar e ao Castelo deveria ser também um espelho, onde a cidade e a nação
pudessem buscar a imagem que verdadeiramente queriam e deveriam projetar, a
imagem do progresso, da civilização, da higiene e da beleza. Dia a dia, no
movimentado ano de 1922, o Rio de Janeiro assistia ao espetáculo diário do
passado representado pelo Castelo e se esvaindo em forma de lama pelas
mangueiras hidráulicas, enquanto que sobre o aterro resultante tomavam forma os
palácios e as avenidas (KESSEL, 2000, p. 61).
A Exposição foi montada ao longo de
dois eixos, entre o final da Avenida Rio Branco e a Praça XV, cujo vértice era
a antiga Ponta do Calabouço, agora afastada do mar pelos sucessivos aterros.
É importante destacar que o ano de
1922 foi crítico para o governo brasileiro, repleto de disputas e levantes
militares. Assim, o governo de Epitácio Pessoa não poupou esforços e recursos
para mostrar que o Brasil fazia parte do “mundo civilizado” durante a Exposição
do Centenário.
As obras do desmonte pararam durante
a Exposição. O mandato de Carlos Sampaio finalizou a 15/11/22. Nos dois últimos
meses o ritmo de demolição foi acelerado apesar das controvérsias sobre as
tentativas de evitar o desaparecimento do Hospital São Zacharias e do Complexo
Jesuítico. Carlos Sampaio frustrou os defensores dos valores históricos
dizendo: “... Como se fosse possível
arrasar o morro do Castelo sem demolir tudo o que se achava sobre
ele...”.(SAMPAIO, 1928, p. 7, apud
KESSEL, 2000, p. 62).
O governo de Carlos Sampaio foi
comparado muitas vezes com a administração de Pereira Passos, pois marcou para
sempre a paisagem carioca. Entretanto, o arrasamento do Morro custou uma
fortuna para a cidade. Somente com banqueiros americanos e holandeses, a
prefeitura contraiu uma dívida externa próxima de 24 milhões de dólares. Assim,
ao sair do governo, Carlos Sampaio deixou a prefeitura do Distrito Federal
praticamente falida. E mais, o morro levaria anos até ser completamente
destruído.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A cidade do Rio de Janeiro faz parte
da nossa identidade. Sem a sua memória, sem os seus principais símbolos,
perdemos nossas referências. Por isso,
é fundamental preservar a sua história.
Procuramos nesta pesquisa, estudar a evolução do Morro do Castelo, berço
da nossa cidade, relacionando-a aos processos sociais no tempo e no espaço.
Neste contexto, ao analisar a
evolução do Morro do Castelo, foi necessário entender os processos sociais que
lhe deram forma e função. Se para Mem
de Sá o Morro desempenhou uma função importantíssima na defesa e povoamento da
cidade do Rio de Janeiro no século XVI, para Carlos Sampaio, o “demolidor” do
Castelo, a Colina era um verdadeiro obstáculo não só à expansão urbana do
século XX, mas também à expansão do capital.
A importância história do Morro do
Castelo não foi suficiente para se constituir num fator à sua preservação. Para se tornar moderna, além da erradicação
de cortiços e abertura de novas avenidas, a cidade do Rio de Janeiro viu o seu
principal símbolo ser destruído.
Desta forma, o berço da nossa cidade
foi vítima da modernidade instaurada com a ordem republicana. Esta, não via com
bons olhos a cidade do Rio de Janeiro, considerada anti-nacionalista, agitada,
politizada e cheia de símbolos coloniais.
Esta aversão as formas e estruturas
construídas durante a colonização portuguesa, ajuda-nos a entender um dos
fatores que explica o arrasamento do Castelo.
Esta acrópole era o ícone maior da colonização lusitana em nossa cidade.
Se não era possível, no primeiro momento, transferir a capital para o interior
do Brasil, seria construída então, aqui mesmo, a nova capital. Neste contexto, o Morro do Castelo não fazia
parte deste projeto.
A maior intervenção empreendida no
tecido urbano da cidade do Rio de Janeiro, ao nosso ver, o arrasamento do Morro
do Castelo refletiu os interesses e as necessidades da classe dominante e da
expansão do capital. O deslocamento da população pobre e a valorização dos
terrenos, vão ao encontro desses interesses. Os intelectuais, os engenheiros,
os médicos e sanitaristas deram o respaldo científico que legitimou o desmonte,
e a imprensa em grande parte, apoiou em prol da modernização e civilização da
cidade.
Assim, analisar o desmonte somente
pelo prisma da higiene e da engenharia, é uma visão pouco crítica. É necessário
entender os principais interesses de agentes de intervenção no espaço urbano,
ou seja, a relação entre o capital e o Estado.
O Morro do Castelo estava localizado
numa das áreas mais valorizadas do Centro da cidade, por isso, se torna
impossível analisar o desmonte da Colina sem tocar na questão da reprodução do
capital imobiliário. Por trás das questões higiênicas, estéticas ou até mesmo
preconceituosas contra o português, tínhamos principalmente, uma relação entre
o Estado e o capital imobiliário.
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[1] Professor de 1º e 2 º graus com pós-graduação em Políticas Territoriais do Estado do Rio de Janeiro pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro ( UERJ ) . E-mail: geopaulo.barros@uol.com.br .
[2] Apesar de realizar muito bem a sua função defensiva, o sítio de fundação não era apropriado para o crescimento da cidade. O local era ilhado, não tinha água potável, o acesso ao interior era difícil e era vulnerável aos ataques inimigos (REIS, 1986).
[3] Diferentemente dos espanhóis, que buscavam as mesetas e planícies para ocuparem um território, os portugueses buscavam sítios em elevação para a construção de suas cidades. Esta estratégia era adotada também pelos romanos, visigodos e muçulmanos em Portugal (PEREIRA, 1988)
[4] Segundo o arquiteto Morales De Los Rios, a denominação Morro do Descanso surgiu na escritura da sesmaria (terras doadas pelo governador geral em nome da Coroa Portuguesa)doada pelo Governador Christovão de Barros à um dos conquistadores da cidade, Nuno Tavares. Tal escritura é datada de 1573. (Jornal do Commércio, 10/11/1921).
[5] Caderno de Domingo, Jornal do Brasil, janeiro de 1994.
[6] Além da função religiosa, a igreja matriz também possuía função militar. Por estar localizada na parte mais alta da Colina, as duas torres eram usadas eventualmente para vigia da costa.
[7] Elevado sobre os terrenos pantanosos, o Morro do Castelo era um lugar mais salubre e fresco do que a planície encharcada.
[8] Revista de Domingo, Jornal do Brasil, Janeiro de 1994.
[9]
Havia uma ladeira localizada na praia da Piaçava, junto ao porto, que levava ao
alto do morro. Por ser muito íngreme,
logo foi abandonada e substituída pela Ladeira da Misericórdia.
[10] Jornal do Commércio, 10/11/1921.
[11] A rua da Direita era um ponto estratégico pois ligava o Castelo ao morro onde os beneditinos haviam se instalado.
[12] A denominação Ladeira do Poço do Porteiro surgiu com a construção de um poço no terreno do porteiro da Câmara, Mestre Vasco.
[13] Fora do perímetro urbano, formaram-se as lavouras, campos de pecuária e os engenhos de açúcar.
[14] s/d.
[15] Além da instabilidade geológica, os cientistas eram, as vezes, surpreendidos com as explosões que visavam encontrar os possíveis tesouros enterrados pelos jesuítas.
[16] Que horas são? Esta pergunta era respondida após observar o Morro do Castelo; um relógio na torre do Observatório Nacional, onde era içado um balão ao alto do mastro para indicar o meio-dia. (KESSEL, 1997).
[17] Revista Careta, 4 de setembro de 1920 (apud VELLOSO, 1998, p. 30).
[18] Havia projetos que sugeriam a urbanização e transformação do Castelo em pólo de atração turística (VELLOSO, 1998).
[19] Não foi somente a cidade do Rio de Janeiro que copiou o estilo francês. Várias cidades do mundo também copiou esse modelo.
[20]. CAVALCANTI, J. Cruvelo. Nova Numeração dos Prédios da Cidade do Rio de Janeiro.