Reprodução do artigo do historiador José Murilo de Carvalho publicado pelo jornal O Globo em 16/12/99, pág. 7, intitulado – Como escrever a tese certa e vencer .
Ter que fazer uma tese de
doutoramento na incerteza de como será recebida e na insegurança quanto ao
futuro da carreira é experiência traumática. Quando passei por ela, gostaria de
ter tido alguma ajuda. É esta ajuda que ofereço hoje, após 30 anos de carreira
a um hipotético doutorando, ou doutorando, sobretudo das áreas de humanidade e
ciências sociais. Ela não vai garantir êxito, mas pode ajudar a descobrir o
caminho das pedras.
Dois pontos importantes na feitura da tese ou na redação de trabalhos posteriores são as citações e o vocabulário. Você será identificado, classificado e avaliado de acordo com os autores que citar e a terminologia que usar. Se citar os autores e usar os termos corretos estará a meio caminho do clube. Caso contrário, ficará de fora à espera de uma eventual mudança de cânone, que pode vir tarde demais. Começo com os autores ... A regra no Brasil foi e continua sendo: cite sempre e abundantemente para mostrar erudição. Mas, atenção, não cite qualquer um. É preciso identificar os autores do momento. Eles serão sempre estrangeiros. No momento, a preferência é para franceses, alemães e ingleses, nesta ordem. Entre os franceses, estão no alto Ricoeur, Lacan, Derrida, Deleuze, Chartier, Lefort. Foucault e Bourdieu ainda podem ser citados com proveito. Quem se lembrar de Althusser e Poulantzas, no entanto, estará vinte anos atrasados, cheirará a naftalina. Se for para citar um marxista, só o velho Gramsci, que resiste bravamente, ou o norte-americano F. Jameson. Entre os alemães, Nietzsche voltou com força. Auerbach e Benjamin, na teoria literária, e Norbert Elias, em sociologia e história, são citações obrigatórias. Sociólogos e cientistas políticos não devem esquecer Habermas. Dentre os ingleses, Hobsbawm. P. Burke e Giddens darão boa impressão. Autores norte-americanos estão em alta. Em ciência política, são indispensáveis, R. Dahl, ainda é aposta segura, Rorty e Rawls continuam no topo. Em antropologia, C. Geertz pega muito bem, o mesmo para R. Darnton e H. White em história. Não perca tempo com latino-americanos ( ou africanos, asiáticos, etc. ). Você conseguirá apenas parecer um tanto exótico.
Brasileiros não ajudarão muito, mas também não
causarão estrago se bem escolhidos. Um autor brasileiro, no entanto, nunca
poderá faltar: seu orientador ou orientadora. Ignorá-lo é pecado capital. Você
poderá ser aprovado na defesa de tese, mas não terá seu apoio para negociar a
publicação dela e muito menos a orelha assinada por ele. Se o orientador não
publicou nada, não desanime. Mencione uma aula, uma conferência, qualquer
coisa.
O vocabulário é a outra peça chave. Uma palavra correta e você será logo bem visto. Uma palavra errada e você será esnobado. Como no caso dos autores, no entanto, é preciso descobrir os termos do dia. No momento, não importa qual seja o tema de sua tese, procure encaixar em seu texto uma ou mais das seguintes palavras: olhar ( as pessoas não vêem, opinam, comentam, analisam, elas têm um olhar ); descentrar ( descentre sobretudo o Estado e o sujeito ); desconstruir ( desconstrua tudo ); resgate ( resgate também tudo o que for possível, história, memória, cultura, Deus e o diabo, mesmo que seja para desconstruir depois ); polissêmico ( nada de “mono”); outro, diferença, alteridade ( é a diferença erudita ), multiculturalismo ( isto é básico : tudo é diferença, fragmente tudo, se não conseguir juntar depois, melhor ); discurso, fala, escrita, dicção ( os autores teóricos produzem discurso, historiadores fazem escrita, poetas têm dicção); imaginário ( tudo é imaginado, inclusive a imaginação ), cotidiano ( você fará sucesso se escolher como objeto de estudo algum aspecto novo do cotidiano, por exemplo, a história da depilação feminina); etnia e gênero ( essenciais para ficar bem com afro-brasileiros e mulheres ); povos ( sempre no plural, “os povos da floresta”, “os povos da rua”, no singular caiu de moda, lembra o populismo dos anos 60, só o Brizola usa ); cidadania ( personifique-a: a cidadania fez isso ou aquilo, reivindicou, etc. ). Para maior efeito, tente combinar duas ou mais dessas palavras. Resgate a diferença. Melhor ainda: resgate o olhar do outro.
Atinja a perfeição: desconstrua, com novo olhar, os discursos negadores do multiculturalismo. E assim por diante.
Como no caso dos autores, certas palavras comprometem. Você parecerá démodé se falar em classe social, modo de produção, infra-estrutura, camponês, burguesia, nacionalismo. Em história, se mencionar descrição, fato, verdade, pode encomendar a alma.
Além dos autores e do vocabulário, é preciso ainda apreender a escrever como um intelectual acadêmico ( note que acadêmico não se refere mais à Academia Brasileira de Letras, mas à universidade ). Sobretudo, não deixe que seu estilo se confunda com o de jornalistas ou outros leigos. Você deve transmitir a impressão de profundidade, isto é, não pode ser entendido por qualquer leitor. Há três regras básicas que formulo com a ajuda do editor S. T. Williamson. Primeira: nunca use uma palavra curta se puder substituí-la por outra maior: não é “crítica” mas “criticismo”. Segunda: nunca use só uma palavra se puder usar duas ou mais: “é provável” deve ser substituído por “ a evidência disponível sugere não ser improvável”. Terceira: nunca diga de maneira simples o que pode ser dito de maneira complexa. Você não passará de um mero jornalista se disser: “os mendigos devem ter seus direitos respeitados”. Mas se revelará um autêntico cientista social se escrever: “o discurso multicultural, com ser desconstrutor da exclusão, postula o resgate da cidadania dos povos da rua”.
Boa sorte.
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