Revista geo-paisagem (on line)

Ano  13, nº 26, 2014

Julho/Dezembro de 2014

ISSN Nº 1677-650 X

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Revista classificada pelo Dursi

 Revista classificada pela CAPES

 

 

 

 

O novo Maracanã como arena do embate entre diferentes formas de torcer: uma contribuição da Geografia dos Esportes

 

Fernando da Costa Ferreira[1]

 bfgeo@uol.com.br

 

RESUMO

 

O presente artigo tem como objetivo principal identificar de que formas o Maracanã, após a sua última reforma, especialmente no período pós-Copa do Mundo, vem sendo apropriado por parte do seu público frequentador, considerando as tensões e contradições encontradas entre as antigas e novas formas de torcer. A realização da Copa do Mundo em 2014 impôs ao nosso país, a um custo bilionário, a construção, reforma ou reconstrução de doze estádios espalhados pelas cinco regiões brasileiras. No caso específico do Maracanã, tivemos a transformação do nosso principal estádio, dotado de uma centralidade popular e de uma alma própria, numa arena elitizada igual a tantas outras espalhadas pelo planeta. Paralelamente, assistimos à imposição de um novo modelo que visa afastar o torcedor tradicional com o aumento do valor cobrado pelos ingressos e com a imposição de um novo padrão de comportamento, baseado em estratégias de disciplinarização e controle dos corpos, constantemente sob a mira de um forte aparato de vigilância, que violenta e inviabiliza o modo de torcer construído ao longo de décadas. As novas arenas ao invés de representarem a criação de um ambiente democrático e aberto à diversidade (que não existia no estádio tradicional) trocam o filtro da exclusão sociocultural pelo da exclusão socioeconômica. O que se percebe, entretanto, é a produção de uma tensão constante que resultará na construção de novas formas de apropriação dos nossos estádios.

 

Palavras-chave: estádios – torcedor – Maracanã

 

 

ABSTRACT

 

This article aims to identify in what ways the Maracanã after the last reform, especially in the post-World Cup period, has been appropriated by part of your audience from the tensions and contradictions found between the old and new forms of encouraging the team. The hosting of the World Cup in 2014 imposed to our country, a billionaire cost, construction, renovation or reconstruction twelve stages scattered throughout the five Brazilian regions. In the specific case of Maracanã, had the transformation of our main stadium, endowed with a popular centrality and its own soul, an elitist arena like many others around the planet. At the same time, we see the imposition of a new model that seeks to exclude the traditional fan from the increase in the amount charged for the tickets and the imposition of a new pattern of disciplining strategies based on behavior and control of bodies that are constantly at the point of a strong apparatus of surveillance, which prevents violent and how to support built over decades. The new arenas instead of representing the creation of a democratic environment and open to diversity (which did not exist in traditional stage) exchange the filter of sociocultural exclusion by the socio-economic exclusion. What is noticeable, however, is to produce a constant voltage will result in the construction of new forms of appropriation of our stadiums.

Keywords: stadiumssupporter – Maracanã

 

Introdução

 

                Quando da escolha, em 2007, do Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014, uma das primeiras questões a serem levantadas tratava da necessidade da construção ou reforma dos palcos destinados às partidas da competição a ser realizada. Nosso parque de estádios de futebol caracterizava-se pela existência de estruturas grandiosas (muitas vezes subutilizadas) construídas predominantemente com dinheiro público, dispersas por todo o território nacional, erigidas, em grande parte, no período da ditadura militar, entre os anos de 1968 e 1980 (MASCARENHAS, 2014). A idade avançada de nossos equipamentos futebolísticos, somada ao precário estado de conservação dos mesmos, acrescentava outra característica a eles: o extremo desconforto oferecido ao torcedor,  algo que,  para o frequentador habitual, talvez pouco incomodasse, mas que, para outros públicos, principalmente o feminino, constituía-se em (mais) um fator que desestimulava a ida a uma partida de futebol.

 

            A necessidade de modernização de nossos equipamentos futebolísticos era um fato inquestionável. Entretanto, o problema não residia na razão, mas sim na forma como essa discussão foi conduzida. Inicialmente, o Brasil propôs que 14 estádios fossem utilizados para o Mundial, enquanto que a FIFA exigia entre oito e dez praças de esportes. Após uma longa negociação, ficou estabelecida a construção, reconstrução ou reforma (a um custo bilionário) de 12 estádios, distribuídos pelas cinco regiões brasileiras. O resultado dessa “febre construtora” foi uma verdadeira farra promovida pelas grandes empreiteiras. As obras de mobilidade urbana (que ficariam como legado do megaevento) serviram como pretexto para um festival de remoções e para aumentar ainda mais o já altíssimo custo de realização da Copa do Mundo e, claro, o lucro dessas e de outras empresas do setor.  A “cereja do bolo” foi a entrega (esta é a palavra mais adequada) da administração da maior parte das novas arenas, construídas em grande parte com dinheiro público, à iniciativa privada, inclusive com a participação ativa das grandes construtoras em muitos desses consórcios. Ou seja, assistimos a uma socialização dos gastos e a uma privatização dos lucros (VAINER, 2013).  Fazendo uma alusão à obra de Milton Santos (2000), a Copa do Mundo que nos foi vendida como fábula acabou servindo como perversidade, fazendo a alegria dos atores hegemônicos.

 

            O próprio termo estádio caiu em desgraça, verdadeiro sinônimo de atraso. A palavra de ordem passou a ser arena, expressão concreta da nova imagem que o nosso país queria projetar para o resto do mundo. Esse verdadeiro “bota abaixo” resultou na criação de ambientes que, tecnicamente falando, atendiam a todas as exigências contidas no caderno de encargos da FIFA (limpos, claros, arejados e confortáveis). Entretanto, a modernização veio acompanhada de uma série de imposições e restrições que se adequam ao jeito europeu ou norte-americano de torcer, mas que pouco (ou nada) levaram em conta o nosso modo de apropriação desses equipamentos, construído ao longo de décadas. No novo modelo de arena, o torcedor  tradicional  não tem vez nem voz. Não se trata de uma exaltação ao antigo estádio que, apesar de toda a magia exercida sobre o torcedor tradicional, também se constituía num ambiente excludente, machista, hostil a todos aqueles grupos que não se adequavam ao perfil “característico” dos frequentadores desses locais.  Em relação ao acesso ao interior desses equipamentos, verifica-se a troca da exclusão sociocultural presente no estádio tradicional pela exclusão socioeconômica imposta pelas arenas via cobrança de ingressos cada vez mais caros. Dentro delas, a que se assiste agora é ao embate entre novas e antigas formas de torcer. Dessa tensão constante, teremos a criação de novos ambientes, inclusive no novo Maracanã, nosso objeto de estudo.           

 

            Sendo assim, o presente artigo tem como objetivo principal identificar de que formas o Maracanã, após a sua última reforma, especialmente no período pós-Copa do Mundo, vem sendo apropriado por parte do seu público frequentador com base nas tensões e contradições encontradas entre as antigas e novas formas de torcer. Podemos destacar também os seguintes objetivos específicos: relacionar a análise de conceitos geográficos ao estudo dos estádios de futebol em suas dimensões concreta e simbólica; compreender o processo de transformação do Maracanã, de um estádio concebido para abrigar as massas, dotado de uma centralidade popular e de uma alma própria, numa arena neutra, similar a tantas outras espalhadas pelo planeta, ápice de uma arquitetura que visa atender apenas ao espectador passivo, característico da sociedade do espetáculo. Para tal, dividiremos o texto em três seções. A primeira parte é dedicada ao estudo dos estádios de futebol por meio da utilização de alguns conceitos relacionados à geografia visando à formulação de definições que permitam a construção de relações entre a ciência geográfica e os estádios. A segunda seção mostra o processo de transformação do Maracanã, de um estádio público e popular em uma arena pasteurizada, concedida à administração do capital privado e voltada para um público economicamente mais “interessante”. Na terceira e última parte, analisaremos de que formas o mítico estádio carioca vem sendo apropriado via um jogo de inclusões e exclusões com destaque para as torcidas organizadas e as torcidas de alento (movimentos). É exatamente acerca desse último grupo que concentraremos a nossa análise, uma vez que, apesar de se apresentarem como alternativa à violência associada às torcidas organizadas e à passividade dos torcedores avulsos e sócios torcedores, carregam consigo uma série de contradições. A metodologia adotada parte da pesquisa bibliográfica com destaque para as obras de autores ligados diretamente à Geografia dos Esportes (John Bale, Gilmar Mascarenhas e Christopher Gaffney), ou cuja produção acadêmica permita o estabelecimento de analogias com o campo esportivo, casos de Henri Lefèbvre e Milton Santos. No que diz respeito à análise de fatos cotidianos, a consulta a sítios da internet desempenhará um importante papel. Finalmente, as observações realizadas durante anos como frequentador do estádio Mário Filho, primeiramente como torcedor e atualmente (também) como pesquisador, contribuirão para o desenvolvimento do artigo que se segue.

 

 

Geografia e Estádios de Futebol

 

 

            No campo da Geografia dos Esportes, ainda há um longo caminho a ser explorado em relação ao estudo dos estádios de futebol propriamente ditos. Inicialmente podemos entendê-los como estruturas monumentais, de grande visibilidade na paisagem urbana, dotadas de uma dimensão concreta e outra simbólica, palco tanto de sensações topofílicas quanto topofóbicas. John Bale (2008), pioneiro desse estudo no campo da ciência geográfica, destaca que o estádio, além da forte presença e significado que exerce em cidades dos mais variados portes, assim como a igreja, é um local de congregação e, para muitos, de adoração, sendo frequentemente comparado pelo autor (por outras razões) a um jardim, a um teatro ou a uma prisão, podendo apresentar diferentes usos ao longo de sua história.

 

            Em sua busca por uma classificação objetiva acerca do que é um estádio, Christopher Gaffney (2008) utiliza como principais critérios a forma arquitetônica, seu uso primário e seu arranjo espacial interno. Ao excluir de sua análise as arenas indoor, delimita como objeto de estudo os equipamentos que abrigam esportes praticados sobre uma superfície de grama, seja ela natural ou artificial, caso do futebol. Dessa forma, define-os como uma grande estrutura, aberta, quase sempre de caráter permanente, construída e mantida com a principal finalidade de abrigar espetáculos esportivos. A forma de um estádio, seu tamanho e localização aliados à função por ele desempenhada como espaço público ajudam a moldar as memórias, texturas e experiências que construímos das cidades ao redor do planeta.

 

            No que diz respeito especificamente ao estádio de futebol, Gilmar Mascarenhas busca defini-lo tanto de acordo com a sua presença física e a relação com o espaço urbano (configuração externa) quanto no que se refere às relações construídas entre o torcedor e esses equipamentos (apropriação interna). Sob uma perspectiva da Geografia Urbana, o autor subdivide sua análise da seguinte forma: a. o estádio tratado como objeto geográfico caracteriza-se como um “edifício ou equipamento de acesso coletivo que se comporta como uma centralidade física e simbólica no espaço urbano-metropolitano” (MASCARENHAS, 2014, p.161); b. no plano operacional urbanístico, exerce a função de centralidade periódica, capaz de atrair um significativo fluxo de visitantes em dias de jogos, obrigando um “reordenamento na gestão pública de seu entorno (para garantir segurança e acessibilidade) e gerando fugazes oportunidades comerciais e de serviços ao setor informal” (MASCARENHAS, 2014, p.161). Nesse sentido, classifica-o como um espaço “de sociabilidade específica, memória acumulada, vivida coletivamente, que se realiza de forma objetiva, na concretude do lugar” (MASCARENHAS, s/d). Ao unir as duas linhas, cita o estádio como “uma centralidade constante, permanente na paisagem física e cultural” (MASCARENHAS, 2002, s/p).          

 

            Podemos relacionar os estádios de futebol à forma como Lefèbvre (2006) classifica o espaço em suas três dimensões: concebido (visto como o espaço dominante numa sociedade, pensado pelos atores hegemônicos), percebido (espaço da vida cotidiana) e vivido (entendido como espaço dominado, carregado de símbolos e imagens, portanto, suportado, e a imaginação de quem os frequenta tenta modificar e apropriar). Para o autor, essas três dimensões espaciais acabam enfraquecidas caso seja a elas atribuído o estatuto de um “modelo” abstrato. Por meio dessa observação, podemos compreender um estádio de futebol como um espaço concebido, percebido pela população e vivido pelos seus frequentadores.        

 

            Pierre Nora (1993), ao tratar do termo “lugares de memória”, classifica-o como lugares nos quais coexistem em graus diversos as dimensões material, simbólica e funcional com os três aspectos coexistindo sempre. Trazendo a análise para o estádio de futebol, ele só se transforma em lugar de memória se a imaginação o investir de uma aura simbólica. Seguindo as ideias de Brunet (1992) de que cada lugar tem um significado próprio, podemos classificar os estádios como “lugares de memória” por serem fonte tanto de identidade coletiva quanto de atividades econômicas, reforçando o sentimento de pertencimento por parte de seus aficionados, palco de cristalização das representações coletivas, dos símbolos que se encarnam nesses lugares memoráveis.

 

            Mudando o foco da nossa análise para a questão territorial, Haesbaert (1997) não encara o território como dotado de um único significado, pois, ao mesmo tempo reconhece-o como possuidor de uma dimensão simbólica e outra concreta, priorizando, desse modo, seu caráter político-cultural, respeitando a multiplicidade relacionada à sua formação ao longo da História, desde as formas mais tradicionais representadas pelos laços culturais de identidade e pelo controle sobre o espaço, geralmente delimitados por fronteiras bem definidas, até os atuais territórios-rede inseridos numa ampla hierarquia econômica mundialmente integrada. Partindo dessa ideia, consideramos o estádio de futebol como um território do futebol tanto do ponto de vista concreto (linhas do campo de jogo, traves, bandeirinhas, arquibancada etc.) quanto simbólico (apropriação do equipamento pelos torcedores, associação do fixo com o esporte pelos moradores da cidade, mesmo entre aqueles que não o frequentam). Quase sempre, o estádio é o principal símbolo concreto de identificação do torcedor com sua equipe. Para Claval (1999), “os grupos só existem pelos territórios com os quais se identificam” (p.11). A localização de um equipamento de tamanho porte pode, inclusive, constituir-se em elemento principal para a conformação de um território concreto, como ocorreu com a criação do bairro Vasco da Gama, na cidade do Rio de Janeiro, em 1998, a partir do desmembramento de parte do antigo bairro imperial de São Cristóvão. A área escolhida para a delimitação do novo bairro teve como ponto de referência o estádio Vasco da Gama, mais conhecido como estádio de São Januário, uma vez que, caso essa praça de esportes tivesse sido erigida numa outra parte da cidade, seria pela subdivisão desse local que surgiria o bairro Vasco da Gama (FERREIRA, 2004).         

 

            Para além da questão do território, sem, no entanto, nos afastarmos dela, admitimos que um estádio de futebol possa sofrer apropriações temporárias por outros grupos e usos, que resultam na produção de novas territorialidades, sendo que as diferentes formas de apropriação desses equipamentos (incluindo as partidas de futebol, seu uso primordial) relacionam-se àquilo que Gaffney (2004) classifica como a “experiência do estádio”, que pode variar de acordo com o tipo do evento, o perfil do público ou mesmo o porte do equipamento onde se desenvolve. No caso específico do Maracanã, apesar de a sua função original relacionar-se à prática do futebol, a realização de eventos de diferentes tipos faz com que, de tempos em tempos, o estádio seja apropriado por territorialidades de caráter efêmero. Ao longo da sua história, e mesmo antes da popularização do termo, ele já podia ser considerado como um estádio multifuncional, servindo como palco de shows, festas, como a chegada de Papai Noel, realização de concursos públicos e de exames de vestibular, celebrações religiosas e até mesmo abrigando outro esporte, caso da partida de voleibol disputada entre as seleções do Brasil e da União Soviética, em 1983 (até hoje o maior público da história do esporte). Durante tais apropriações, o estádio passava a ser frequentado (inclusive) por indivíduos avessos ao futebol e por grupos excluídos do ambiente relacionado ao estádio tradicional. Sendo assim, podemos classificar o estádio de futebol como um território do futebol tanto na dimensão do concreto quanto do simbólico, cujos diferentes usos produzem múltiplas territorialidades de caráter transitório.

 

            A realização da Copa do Mundo de Futebol marcou uma profunda transformação em nosso parque de estádios, muitos deles rebatizados como arenas. Bale (2003) nomeia essas estruturas pós-modernas com o emprego do termo tradiums, do inglês trade (comércio, troca) + stadium (estádio), ou seja, um espaço multiesportivo, multifuncional e de uso flexível, com finalidade declaradamente comercial. Trilhando um caminho parecido, Gaffney (2004) geograficiza as arenas (símbolo da modernidade em oposição ao “atraso” representado pelos antigos estádios) ao empregar o termo “estádio-espaço” para definir esse novo modelo, enfatizando a sua função de espaço economicamente produtivo, que deve gerar renda todos os dias, não apenas durante a realização das partidas de futebol e demais eventos por ele abrigados. Ao contrário do que acabamos de escrever sobre estádios de futebol tradicionais, as arenas não se configuram claramente como territórios do futebol, uma vez que, dependendo do projeto arquitetônico, podem também abrigar, além de outros esportes, shopping centers, boates, instituições de ensino, restaurantes, centros empresariais dentre tantas outras atividades que objetivam transformar esses novos espaços em espaços de consumo permanente nos quais o capital possa se reproduzir de forma inesgotável. O Maracanã, palco da final da Copa do Mundo, não passou incólume por esse processo, sofrendo uma profunda reformulação que o transformou de um estádio concebido para as massas numa arena projetada para o torcedor-consumidor (espectador), característico da sociedade do espetáculo. É o que veremos a seguir.

 

 

O Processo de Elitização do Maracanã

 

            Quando da sua inauguração, em 1950, o Maracanã surgiu como um estádio público, fruto de um amplo debate que envolveu grande parte da população carioca, dotado de forte centralidade popular (fácil acesso por estar situado na convergência entre as porções mais densamente habitadas da cidade e pela farta opção de meios de transporte), concebido para as massas, bancado pelos cidadãos mais abastados (os recursos aportados pelo Banco da Prefeitura seriam pagos com a receita obtida na venda de cadeiras cativas, o que livraria os cofres da municipalidade do ônus da obra[2]), capaz de abrigar todas as classes sociais, mesmo que segregadas. Sua construção representou um triunfo da engenharia e arquitetura nacionais, seja pelo tempo de execução da obra (um ano e dez meses), seja pela geometria adotada em forma de falsa elipse, que gira em torno de quatro focos de visão (VIEIRA, 2000), aproximando o público do campo de jogo, sem a utilização de colunas que obstruíssem a visão dos torcedores. Tudo isso contribuiu para que o estádio rapidamente (apesar da derrota da seleção brasileira na final da Copa do Mundo de 1950) construísse uma relação de afeto com o torcedor e com a população carioca, deixando de ser apenas um espaço concebido para  transformar-se em espaço percebido e, para muitos, em espaço vivido.

 

            Entretanto, nos dias atuais, a concessão do estádio a um consórcio privado, combinada a uma “mudança de perfil” do público frequentador, replicou e reforçou naquele local o caráter excludente e elitista verificado ao longo de intervenções de grande impacto, bancadas pelo poder público em outras partes do tecido urbano carioca visando “preparar” a cidade para receber a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Tal processo, iniciado no final do século passado, teve como resultado a transformação de um ícone arquitetônico nacional numa arena pasteurizada, característica daquilo que Debord (2003) denomina como sociedade do espetáculo.

 

            A primeira grande transformação sofrida pelo estádio teve início em 1999 a fim de adequá-lo às exigências da FIFA para a realização do I Campeonato Mundial de Clubes a ser realizado no ano seguinte. Ao custo de R$ 106 milhões, as arquibancadas foram divididas em cinco setores (dois verdes, atrás de cada gol; um branco, na parte central em frente às cadeiras especiais; e dois amarelos, entre os verdes e o branco) com a colocação de barreiras de acrílico com base de concreto a separá-los das cadeiras especiais e demais setores da arquibancada. A proibição da FIFA de que espectadores assistissem às partidas em pé em competições por ela patrocinadas fez com que a geral, setor popular localizado à beira do gramado, permanecesse fechada durante os jogos. Apesar da transformação sofrida em sua configuração interna, podemos considerar que a opinião dos frequentadores do estádio também tenha sido levada em conta uma vez que, a pedido das torcidas organizadas, os assentos do setor verde, ocupados por elas, não possuíam apoio para as costas, o que possibilitaria a livre movimentação necessária para a carnavalização do espetáculo (FERREIRA, 2013). Ou seja, o estádio ganhou em conforto e segurança (a setorização impediu o embate entre torcidas organizadas rivais, algo comum quando a separação entre elas era feita por uma frágil barreira formada por policiais militares) sem grande prejuízo para a cultura do torcedor.

 

            O primeiro grande golpe aplicado contra o modo tradicional de torcer no estádio veio em 2005, quando do seu fechamento para as obras relacionadas à realização dos Jogos Pan-Americanos de 2007. Ao reabrir, em janeiro de 2006, constatou-se que os R$ 304 milhões investidos serviram basicamente para rebaixar o gramado e, principalmente, acabar com a geral, substituída por um prolongamento das cadeiras azuis, deixando “órfãos” tanto os torcedores menos abastados quanto aqueles que, mesmo dispondo de meios para pagar por um ingresso em outro setor, preferiam frequentá-la como forma de viver a experiência de um jogo à parte.

 

            Antes de tratarmos especificamente da grande reforma com ares de reconstrução que resultou na configuração atual do Maracanã, faz-se necessário o entendimento das noções de verticalidades e horizontalidades elaboradas por Milton Santos (2006), tendo em vista que esses dois termos serão bastante utilizados ao longo do artigo. De acordo o autor:

 

As verticalidades são vetores de uma racionalidade superior e do discurso pragmático dos setores hegemónicos, criando um cotidiano obediente e disciplinado. As horizontalidades são tanto o lugar da finalidade imposta de fora, de longe e de cima, quanto o da contra finalidade, localmente gerada. Elas são o teatro de um cotidiano conforme, mas não obrigatoriamente conformista e, simultaneamente, o lugar da cegueira e da descoberta, da complacência e da revolta (p.193)

 

 

            Voltando ao estádio, a escolha do Brasil, em 2007, como sede da Copa do Mundo de 2014, pôs em evidência o fato de que os nossos estádios (muitos deles construídos entre 1968 e 1980 sob o patrocínio da ditadura militar que governava o nosso país) encontravam-se obsoletos. A FIFA, detentora dos direitos sobre o megaevento, foi taxativa: nenhuma das nossas praças de esportes encontrava-se apta a receber partidas do Mundial. Desde então, uma onda bilionária de reformas e reconstruções tomou conta do país. Doze estádios foram erigidos ou reconstruídos (nesse caso, o emprego do termo “reforma” não condiz com a magnitude de tamanhas transformações). O Maracanã, sede de sete partidas, incluindo a final, passou pela maior intervenção de sua história. Ao custo de cerca de R$ 1,2 bilhão, o antigo “maior do mundo” trocou a sua monumentalidade original pela funcionalidade e privilégio para conforto do espectador. Se no mundial de 1950 sua construção representou a vitória de um projeto de concepção e execução nacionais, mais de seis décadas depois a arena que o substituiu resultou da imposição de uma verticalidade chamada “Padrão FIFA”. Para completar, o governo do estado do Rio de Janeiro entregou (em todos os sentidos) a administração do estádio pelo período de 35 anos ao consórcio formado pela IMX Venues e Arenas, Odebrecht Properties e AEG. Esse fato ganha contornos ainda mais escandalosos ao verificarmos que a empresa contratada para a realização do estudo de viabilidade acerca da privatização do estádio, IMX, logo, portadora de informações privilegiadas, participa do consórcio responsável pela sua administração.

 

            Os vultosos recursos públicos investidos na preparação do principal palco da Copa e das Olimpíadas visam atender um público restrito que, muitas vezes, pouco se interessa pelo esporte em si, atraído principalmente pela visibilidade alcançada por eventos de tamanho porte, verdadeiros espectadores/consumidores in loco da sociedade do espetáculo. Afinal, “o espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se toma imagem” (DEBORD, 2003, s/p, grifo do autor).

 

            Sai de cena, então, o torcedor tradicional, “artista do espetáculo” e entra em seu lugar o espectador de maior poder aquisitivo, visto como ordeiro, disciplinado, com maior poder de consumir “o” e “no” espetáculo.

 

                Fica clara a diferença entre o espaço vivido do “velho” estádio do Maracanã, no qual todos os estratos econômico-sociais tinham vez e voz para torcer pelo clube do coração, e o espaço concebido que se desejava para a nova arena, desterritorializando o torcedor tradicional via aumento do preço dos ingressos e da imposição de padrões de comportamento, ou seja, verifica-se uma imposição das verticalidades (modelo de arena Padrão FIFA, Consórcio Maracanã, torcedor-consumidor, disciplinarização e aprisionamento dos corpos etc.) sobre as horizontalidades (antiga configuração interna do estádio, normas de uso do espaço mais flexíveis, presença de torcedores de diferentes estratos sociais, carnavalização do espetáculo etc.). Entretanto, nem sempre as verticalidades conseguem se impor plenamente sobre as horizontalidades. Terminada a Copa do Mundo, percebe-se um processo contínuo de inclusão, exclusão e reapropriação daquele espaço sagrado tradicionalmente marcado por rituais profanos. É o que veremos na próxima seção.

 

 

O Embate entre Antigas e Novas Formas de Torcer

 

 

O Novo Maracanã e o Torcedor

 

 

            Uma vez que o processo de reforma/reconstrução do Maracanã em sua dimensão concreta encontra-se finalizado, procuraremos identificar de que formas o “novo” estádio vem sendo e virá a ser apropriado por parte do seu público frequentador, que pode ser dividido em quatro categorias: torcedores avulsos, torcedores organizados, torcedores de alento e sócios torcedores. Deixando de lado os torcedores avulsos e os  sócios torcedores, concentraremos, nesta seção, a análise no embate entre antigas e novas formas de torcer representadas, respectivamente, pelas torcidas organizadas e pelas torcidas de alento (movimentos).

 

            Como forma de identificar e marcar as diferenças existentes entre essas duas formas de torcer, Isabella Menezes (2010) estuda duas das maiores torcidas do Botafogo Futebol e Regatas: a Fúria Alvinegra, torcida organizada com o arranjo que conhecemos tradicionalmente, e a Loucos pelo Botafogo, torcida de alento ou “movimento”, como eles mesmos preferem se identificar para se distanciarem da imagem associada à violência e a atos de desordem praticados pelas torcidas organizadas e de ampla divulgação por parte da mídia. A autora cita que os movimentos colaboram com a “co-construção do espetáculo dos estádios, seja na elaboração de novas formas de torcer, seja na construção de cenários colaborativos” (p.59). Uma de suas principais características é o repúdio a qualquer forma de violência, seja ela física (apesar de terem como inspiração as barra-bravas argentinas), seja simbólica, ao mesmo tempo em que seus cânticos procuram, ao invés de ofender o adversário e a equipe de arbitragem, incentivar os jogadores do início ao fim, fazendo alusão também aos craques do passado. A promoção de ações de forte impacto visual como a “avalanche” introduzida pela Geral do Grêmio (considerada a pioneira dentre as torcidas de alento brasileiras) no antigo estádio Olímpico de Porto Alegre e a exibição de mosaicos por parte da Urubuzada do Flamengo[3] também podem ser destacadas como exemplos de uma nova postura relacionada ao ato de torcer que, ao mesmo tempo em que torna o espetáculo mais agradável aos olhos e ouvidos dos telespectadores e demais espectadores presentes, marca uma postura ativa, de torcedor, em oposição à passividade do espectador. Tais atitudes angariaram rapidamente a simpatia dos meios de comunicação, que buscam exaltá-las como expressões saudáveis de torcer em oposição às cenas de selvageria promovidas pelas tradicionais torcidas organizadas.

 

            Entretanto, a nosso ver, tais agrupamentos já nasceram sob o signo da contradição uma vez que, apesar de pregarem a não violência, tiveram como fonte de inspiração torcidas com uma “folha corrida” de fazer inveja às nossas organizadas mais temidas. Além disso, as torcidas de alento, apesar de adequarem-se ao modelo desejado para agradar ao tipo de público frequentador das novas arenas, torcendo de maneira ordeira e não ofensiva, , entram em choque com essa verticalidade ao assumir a postura de assistir aos jogos em pé o tempo inteiro. É nessa oposição à imposição de um aprisionamento dos corpos dentro do espaço do estádio de futebol que podemos encontrar um ponto de convergência entre as torcidas de alento e as torcidas organizadas.

 

            Ao mesmo tempo, as manifestações racistas registradas na arena do Grêmio, que partiram do setor ocupado pelo movimento Geral do Grêmio contra o goleiro santista, Aranha, durante partida realizada pelas oitavas de final da Copa do Brasil de 2014, e que culminaram com a exclusão da equipe gaúcha da competição e com o indiciamento de quatro torcedores por crime de injúria racial[4], reforçam a ideia de que as torcidas de alento tendem a reproduzir cada vez mais os padrões de comportamento associados às torcidas organizadas.

 

            Gustavo Coelho (s/d) apoia-se em autores da psicologia e da antropologia para elaborar a tese de que a arquitetura do Maracanã (e das novas arenas), sob o pretexto de proporcionar maior conforto, privilegia o torcedor de tipo individual (torcedor sem mito) buscando a cisão dos elos prazerosos e perigosos construídos pelo coletivo dos membros das Torcidas Organizadas (torcedores com mito), que têm nos rituais relacionados à dor um “fator de comunhão e cimentação social”. Nas palavras do autor, o modelo arquitetônico das novas arenas privilegia os torcedores que usam mais os olhos que o corpo.

 

            Gaffney e Mascarenhas (2005) analisam, sob uma ótica foucaultiana, a transformação, ao longo das duas últimas décadas, dos estádios de futebol de espaços de expressão cultural, lugar de festa, em espaços disciplinares da vida cotidiana. Para eles, esse processo ocorre em razão da adoção de uma série de intervenções relacionadas à forma arquitetônica e aos regulamentos de uso desses espaços, amparados por um forte esquema de vigilância, que resulta num aumento significativo do controle sobre os corpos, ritos e manifestações coletivas.

 

            Seguindo a mesma linha, Coelho (s/d) elege a cadeira como símbolo que sintetiza o elo velado existente entre a arquitetura e o psiquicopolíticosocial com as novas arenas, representando uma imposição de novos padrões comportamentais via disciplinarização (aprisionamento) dos corpos e vigilância constante sobre o comportamento dos torcedores. Justifica sua afirmação com um argumento que, de tão simples, chega a ser desconcertante como um drible de Garrincha: o de que não há festa efusiva num ambiente com cadeiras uma vez que, numa festa, a primeira coisa que fazemos é afastá-las. Da mesma forma, elas não estão presentes nas pistas de dança e nos shows de rock. Para ele, as expressões conforto do torcedor, lugares marcados e visão completa do campo são termos que apontam um desejo por uma mudança de paradigma na forma de torcer, mas que acabam camuflando, sob o relaxamento natural do corpo que senta, seus reais impactos na experiência subjetiva.  

 

            O processo de transformação do futebol num produto mais “palatável” destinado a um público de maior poder aquisitivo também ocorreu com outros elementos relacionados à cultura popular. Basta perceber como os antigos botequins, popularmente conhecidos como “pés-sujos”, foram substituídos pelos “pés-limpos”, na sua maioria, franquias de grandes redes de bares, onde, num ambiente clean é  comum a presença de grupos compostos exclusivamente por mulheres (algo inimaginável tanto nos “botecos” quanto nos estádios de outrora). Podemos também estabelecer um paralelo entre a imposição do modelo das arenas Padrão FIFA, que tem nos stewards, fiscais responsáveis por manter a ordem no recinto de jogo, um de seus personagens, e a introdução da figura do lanterninha como parte do processo de elitização das salas de cinema norte-americanas, posto em prática nos primeiros anos do século passado. Nas palavras de Costa (1995):

 

 

Há um grande esforço de domesticação destes espaços selvagens dos cinemas, para afastar os temores da gente refinada: diminuição da escuridão absoluta nas salas de projeção, presença do lanterninha, eventual presença de um comentador em alguns casos, manutenção de ambientes limpos, arejados etc. Assim, junto com a estabilização da indústria do cinema inicia-se a criação de um padrão ambiental para o consumo de filmes, um padrão narrativo e um processo de massificação de um gosto pequeno-burguês.          (p. 66)

 

 

            No caso dos estádios brasileiros, a forte disciplinarização via aprisionamento dos corpos num espaço tradicionalmente marcado por expressões festivas e transgressoras, algumas delas ingênuas (qual o menino que, ao frequentar o estádio, nunca aproveitou para soltar um palavrão ao lado do pai sem ser repreendido pelo mesmo?), outras nem tanto (cânticos e ofensas racistas e homofóbicas, por exemplo), tem como objetivo criar um ambiente propício à apropriação desses espaços tradicionalmente populares por grupos de maior poder aquisitivo (torcedor-consumidor) que desejam desfrutar do espetáculo sem perturbações, o que afeta tanto as torcidas organizadas quanto as torcidas de alento.  

 

            Tomemos novamente como exemplo a Geral do Grêmio. Sua marca registrada era a “avalanche”, executada logo após os gols da equipe no antigo estádio Olímpico, durante a qual seus componentes desciam correndo os degraus até a arquibancada inferior, chamada de geral por ter a pior visão do campo e por cobrar os ingressos mais baratos (RODRIGUES, 2012), em direção à mureta, como se fossem ao encontro da equipe, num espetáculo de forte impacto visual. Entretanto, com a inauguração em 2012 da nova casa da equipe, a arena do Grêmio, mesmo que o setor da avalanche tenha sido “preservado” com a não instalação de cadeiras atrás de um dos gols, logo, em uma das primeiras partidas realizadas no local, um acidente deixou oito torcedores feridos, espremidos contra o muro. Ao invés de se discutir a falha no projeto arquitetônico (por que isso jamais ocorrera no Olímpico?), a culpa recaiu sobre o “mau comportamento” dos torcedores. Dessa forma, ficou decidido que, como forma de “preservar a segurança do torcedor”, o setor seria isolado e que fossem instaladas barras metálicas, o que inviabilizou a execução da “avalanche[5].

 

            Na outra ponta, os torcedores organizados são vistos como presenças indesejáveis nas novas arenas. De acordo com a lógica mercantil que rege esses espaços, seus cânticos recheados de palavrões e ofensas somados a um comportamento agressivo afastam do estádio o público-alvo cobiçado pelos seus administradores, composto por uma clientela de médio e alto poder aquisitivo, que procura desfrutar do futebol como um entretenimento familiar. As palavras de João Borba, presidente do Consórcio Maracanã S.A., são claras:

 

 

Temos de trabalhar com os clubes nesta mudança de hábitos. Bandeirões gigantes, mastros de bambu, torcedores, sem camisa, não assistir aos jogos em pé... Fui no último fim de semana às finais do tênis em Wimbledon, e no convite, estava escrito que não é recomendável ir com uma determinada roupa... Quando um inglês lê “não recomendável”, entende que não deve usar aquele tipo de roupa. (O GLOBO, 11 de julho de 2013)

 

        

            Não tardou para que as torcidas organizadas externassem sua indignação contra a imposição de um novo padrão de comportamento. Em nota oficial retirada do site Esporte Interativo, a Força Jovem, maior organizada do Club de Regatas Vasco da Gama, ataca veementemente a postura adotada pelo presidente do Consórcio[6]. Para eles:

 

 

O Maracanã foi construído pelo povo, para o povo e sempre será o lugar mais DEMOCRÁTICO do Mundo! (...) "Todos nós se desejarmos ficar em pé assim ficaremos, a não ser que a Presidente Dilma Rossef (sic) sancione uma nova Lei dizendo que as pessoas não podem ficar em pé no campo de futebol, senão serão presos, achamos melhor chamar o BOPE, CORE e toda a FORÇA NACIONAL então, pois prender 70 mil pessoas no Maracanã lotado, tem que haver muita policia e cadeia, e se ela já existe, por favor nos digam o artigo, inciso e parágrafo da mesma cambada de  "Sem Noção" que não entende nada do estilo brasileiro de torcer! (...) Amamos a paz, mas nunca fugiremos da guerra.

 

 

            Entendemos os fragmentos da nota acima, reproduzidos como bastante significativos, pois, ao mesmo tempo em que inicia com a celebração do Maracanã como um espaço democrático, rapidamente assume um tom exaltado, terminando em tom de ameaça, explicitando a disposição para o enfrentamento caso seu direito de torcer de acordo com os seus códigos não seja respeitado, ou seja, fornece argumentos para aqueles que tentam afastá-los do espetáculo.

 

 

Nem Tudo Está Perdido

 

           

            Apesar do quadro sombrio pintado ao longo desta seção, pode-se afirmar que nem tudo está perdido. Ao redor do mundo, mesmo que timidamente, crescem os movimentos contra-hegemônicos, avessos ao processo de elitização que toma conta dos estádios atualmente. Tal processo vem acontecendo com força justamente na Inglaterra, pioneira nessas mudanças. A campanha Twenty’s Plenty (Vinte é o Suficiente), liderada pela Football SupportersFederation (Federação dos Torcedores de Futebol), pressiona os clubes da Premier League a cobrarem o valor máximo de vinte libras pelas entradas destinadas aos torcedores da equipe visitante[7]. Ao mesmo tempo, assiste-se também ao processo de “refundação” de equipes, caso do AFC Wimbledon, (re)fundado[8] em 2002, em razão da mudança do clube original, o Wimbledon FC[9] da capital britânica para a cidade de Milton Keynes, distante cerca de 100km de Londres, assim como a criação de equipes por parte de torcedores órfãos ou insatisfeitos. O caso mais emblemático é o United of Manchester, criado em 2005 por um grupo de adeptos do Manchester United, descontentes com a venda da equipe para o bilionário estadunidense Malcom Glazer. Tal insatisfação se faz visível no estádio de Old Trafford via exibição de cachecóis em verde e amarelo, cores originais do clube. A recente tentativa do proprietário do Hull City, o egípcio Asser Allam, de modificar o nome da agremiação para Hull Tigers, percebido por ele como uma denominação menos local e de maior apelo comercial, esbarrou na forte oposição de grande parte da torcida que, sob o lema City Till We Die (“City até Morrer”) vem conseguindo, até o momento, brecar a vontade do dono do clube[10].   

 

            Talvez o caso mais emblemático de adequação do gosto do torcedor às verticalidades impostas pelos atores hegemônicos que controlam o futebol mundial seja a existência da “muralha amarela” da torcida do Borussia Dortmund, formada graças à retirada, nas partidas válidas pelo Campeonato Alemão e a Copa da Alemanha, dos assentos localizados atrás de um dos gols. São cerca de 25.000 torcedores que assistem às partidas em pé, pulando e incentivando a equipe. Curioso lembrar que o palco de tamanho espetáculo, o antigo Westfalenstadion teve o seu nome alterado para Signal Iduna Park devido à venda de naming rights, mais uma tendência entre as modernas arenas, prova de que o clube alemão não está imune à lógica dominante no futebol mundial.

 

            No Brasil, podemos destacar a atuação combativa de grupos como “O Maraca é Nosso”, que conseguiu minimizar o impacto das intervenções externas sobre o complexo do Maracanã, impedindo a demolição da Escola Municipal Arthur Friedenreich, do Parque Aquático Julio Delamare, do estádio de atletismo Célio de Barros e do prédio do antigo Museu do Índio. No plano da sua apropriação interna, o que vem ocorrendo é que, em situações especiais (principalmente quando correm risco de rebaixamento no Campeonato Brasileiro), as equipes realizam promoções nos setores a elas destinados nas arenas (o que varia de acordo com o contrato assinado entre a agremiação e a entidade que administra o equipamento multiuso), resultando tanto em um aumento do calor da torcida quanto em configurações “bizarras” no interior dos estádios com a torcida concentrada nos setores localizados atrás dos gols, enquanto a parte central recebe pouquíssimos espectadores.

 

 

Considerações Finais

           

 

            Citamos no início do artigo a afirmação de John Bale de que os estádios costumam ser comparados a igrejas, jardins (fusão entre arquitetura e horticultura), teatros e prisões. Com essa frase, compreendemos que a transição do estádio antigo para a arena moderna (ou pós-moderna), caracterizada pelo aprisionamento dos corpos devido a um relaxamento proporcionado pela colocação de cadeiras (COELHO, s/d), somada à imposição ao torcedor de um rígido conjunto de normas que visam restringir sua movimentação, apoiada por um forte esquema de monitoramento controlado por câmeras e “fiscais de comportamento”, permite-nos concluir que os novos espaços tendem a perder seu caráter sagrado, aproximando-se cada vez mais da ideia de cárcere.   

 

            Entretanto, para além de uma visão pessimista, compreendemos o estádio como um gigante de concreto que passa por uma metamorfose simbólica sempre que é apropriado pelo seu público frequentador, que é quem lhe dá vida e, mais do que isso, a alma. Por maiores e mais fortes que sejam as imposições das verticalidades, as horizontalidades resistem ao processo em curso, criando estratégias de resistência e sobrevivência que produzem tensão. É exatamente desse embate (que só terminará no dia que não houver mais a torcida nos estádios) que surgirão as novas formas de apropriação dos equipamentos em questão.

 

            Não pretendemos exaltar o antigo estádio como um espaço idílico, nem mesmo demonizar as arenas “multitudo”, uma vez que compreendemos que o ambiente do estádio tradicional, apesar de democrático quanto ao acesso via cobrança de entradas a um valor que permitia a frequência de todos os estratos socioeconômicos, possuía, ao mesmo tempo, um caráter fortemente machista e violento, marcado pela hostilidade aos grupos que não se enquadrassem nesse modelo. Ao mesmo tempo, o padrão imposto pelas novas arenas, baseado no princípio da exclusão socioeconômica implica desperdício da oportunidade de transformar os estádios de futebol em ambientes verdadeiramente democráticos, que contemplassem o caráter múltiplo da sociedade atual. Trazendo a discussão para o nosso objeto de estudo, enquanto que no antigo Maracanã a exclusão se dava por um filtro sociocultural, no novo Maracanã ela se faz presente por um filtro socioeconômico.

 

            Se, anteriormente, em alusão às ideias de Milton Santos (2000) sobre a globalização, citamos a venda da ideia da realização da Copa do Mundo no Brasil como fábula, mas que a sua implementação se deu como perversidade pela execução, a um custo bilionário, de obras que produziram um processo de desterritorialização tanto concreto (remoções) quanto simbólico (expulsão do torcedor de menor poder aquisitivo dos estádios), da imposição de um novo padrão de fixo esportivo e, consequentemente, de um “processo civilizador” relacionado ao seu uso, que em nada tem a ver com o modo tradicional de torcer construído ao longo de décadas, notamos, também, que a criação de movimentos contra-hegemônicos tanto na escala local quanto global, permite que enxerguemos o processo em curso como possibilidade.

 

            O ambiente interno tanto do Maracanã quanto de qualquer outro estádio de futebol é o resultado de um jogo de forças travado por diferentes atores com base em processos contínuos de inclusão, exclusão e resistência. O jeito de torcer característico do novo Maracanã refletirá a tensão relacionada aos processos anteriormente citados.

 

 

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[1] Professor de geografia do Instituto Benjamin Constant. Doutorando em Geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

[2] Moura, 1997:28.

[3] Os outros três clubes grandes cariocas também possuem “movimentos”. São eles: Loucos pelo Botafogo, Legião Tricolor e Guerreiros do Almirante.

[4] Fonte: http://esporte.ig.com.br/futebol/2014-09-30/policia-indicia-quatro-torcedores-do-gremio-por-injuria-racial-contra-aranha.html Acesso em 1 de dezembro de 2014.

 

[5] Fonte: http://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2013/05/29/apos-acidente-em-avalanche-geral-da-arena-do-gremio-esta-liberada.htm. Acesso em 27 de agosto de 2014.

[6] A nota também ataca as diretorias do Flamengo e, especialmente, do Fluminense, por, em razão do contrato assinado com o consórcio, “roubar” o espaço destinado à torcida cruzmaltina desde a inauguração do estádio, em 1950 (conquistado em razão de a equipe ter sido a primeira campeã do então “maior do mundo”) localizado à direita das cabines de rádio. Fonte: https://br.esporteinterativo.yahoo.com/noticias/torcida-organizada-do-vasco-critica-cartilha-de-conduta-do-torcedor-no-novo-maracan%C3%A3-214625996.html Acesso em 28 de agosto de 2014.

[7] Em 2013, o Newcastle anunciou que aceitaria cobrar o valor de vinte libras para o torcedor da equipe visitante desde que o clube beneficiado fizesse o mesmo com os torcedores do Newcastle. Fonte: http://trivela.uol.com.br/ingleses-avancam-na-briga-por-ingressos-mais-baratos/ Acesso em 30 de agosto de 2014.

[8] Consideramos válido o emprego do termo refundação uma vez que em razão de um acordo firmado pelas diretorias das duas agremiações, o AFC Wimbledon assegurou o direito sobre as conquistas da equipe original, incluindo a FA Cup (Taça da Inglaterra) da temporada 1987/88.  Fonte: http://trivela.uol.com.br/um-time-dos-torcedores/ Acesso em 26 de agosto de 2014.

[9] No ano de 2004 o FC Wimbledon foi rebatizado como Milton Keynes Dons Football Club. Fonte: http://www.theguardian.com/football/2004/jun/21/newsstory.mkdons Acesso em 26 de agosto de 2014.

[10] http://trivela.uol.com.br/vontade-da-torcida-deve-prevalecer-e-hull-precisara-manter-nome-que-tem-desde-1904/ Acesso em 30 de agosto de 2014.

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