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Revista geo-paisagem (on line) Ano 13, nº 25, 2014 Janeiro/Junho de 2014 ISSN Nº 1677-650 X Revista indexada ao Latindex Revista classificada pelo Dursi Revista classificada pela CAPES |
Michel
Foucault e a geografia
Helio
de Araujo Evangelista
(helioevangelista@hotmail.com)
RESUMO
Este artigo pretende
explorar a relação entre o pensamento de
Michel Foucault e a geografia..
Palavras-chaves: Foucault,
geografia , poder
ABSTRACT
This article intends to analyze the relationship between the Michel
Foucault’s thinking and geography.
Key-words: Michel Foucault, geography , power
Apresentação
A primeira impressão de uma leitura
de Michel Foucault (1926-1984) ocorreu na segunda metade da década de 70,
século passado. Foi uma boa impressão, ocorrida durante minha graduação em
geografia pela UFRJ. A discussão girou em torno de sua obra Micro física do poder. Ficou claro uma noção genuína na consideração do espaço
tendo em conta relações de poder.
A segunda impressão já não foi a
mesma. Fazia o curso de doutorado (1995-98) e me vi no desafio de ler Palavras e as coisas. Nesta época também lia O Método de Edgar Morin. O comum entre eles era a subversão no
sentido das palavras.
De certo modo, as duas impressões
sobre Foucault têm relação com duas grandes marcas de sua produção intelectual,
a saber, de um lado uma análise muito arguta sobre os processos sociais, muito
particularmente a questão do poder; por outro lado, uma reflexão voltada à
questão epistemológica.
Numa primeira opinião sobre estas
duas linhas, pode-se julgar que elas se contradizem, porque se pela linha
política, Michel Foucault constrói toda uma exploração temática bem pioneira; pelo campo filosófico, ele
segue a linha da desconstrução, ao menos, a desconstrução da linguagem. Por
exemplo, para ele, Foucault, o homem é feito uma cebola, por mais que o descasque
não se encontra sentido.
Caminho
adotado
Ao contrário do texto anterior sobre
de minha autoria nesta mesma revista on line, quando passei a considerar a
filosofia (no caso a de Kant) para então abordar tema espaço. No presente caso,
sobre Foucault, tratarei diretamente da possível relação deste com a geografia,
para em seguida abordar o pano de fundo vindo de sua filosofia.
Tal caminho decorre da opinião de que Michel Foucault tem uma matriz
filosófica menos nítida se compararmos com Immanuel Kant. Este, em que pese a
dificuldade já destacada, chega a configurar uma filosofia, ou seja, sai da
ideia de pensar o ser para este se
tornar tão somente uma ideação, vide (Husserl , 2004 p. 112 e vs. pgs. )
No caso do Foucault, no entanto,
constitui uma filosofia empapada de um incluso projeto de desconstrução dela
mesma.
Micro-física
do poder [1]
No décimo capítulo do livro temos
uma consideração explícita à geografia advinda de uma entrevista dada pelo autor da obra à revista muito conhecida
pelos geógrafos de nome Hérodote, coordenada pelo geógrafo Yves Lacoste.
Na
primeira indagação da revista ao
filósofo , este se revela. A indagação é : o senhor não teria esquecido a
geografia em seus escritos ? A resposta
foi –
“...
Seu eu fizesse a lista de todas as ciências, de todos os conhecimentos, de
todos os domínios do saber de que não falo e deveria falar, e de que estou
próximo de uma maneira ou de outra, essa
lista seria quase infinita. Eu não falo
de bioquímica, eu não falo de arqueologia . Nem mesmo fiz uma arqueologia da
história. tomar uma ciência porque ela é interessante, porque é importante ou
porque sua história teria alguma coisa de exemplar não me parece um bom método. Será sem dúvida
bom método se o que se quer é fazer uma história correta, limpa,
conceitualmente asséptica. Mas desde o momento em que se quer fazer uma
história que tenha um sentido, uma utilização, uma eficácia política, só
se pode fazê-la corretamente sob a
condição de que se esteja ligado, de uma
maneira ou de outra, aos combates que se
desenrolam neste domínio. Dos domínios
cuja genealogia tentei fazer, o primeiro foi a psiquiatria , porque eu tinha
certa prática e certa experiência de
hospital psiquiátrico e senti que ali havia combates, linhas de forças, pontos
de confronto ...”(1982, p. 154)
O fundamental para Foucault não é
conhecer, é lutar !
É um pensador em luta. Estuda
psiquiatria por força de suas circunstâncias particulares e desenvolve uma
linha de reflexão que transborda para todo um conjunto de conhecimentos, mesmo
que não tenha sido por ele previamente conhecido.
O foco de Foucault é a genealogia ! O processo
de construção do saber, mas um foco animado por estado de beligerância. Ele
conhece participando das tensões do processo
que originou aquele conhecimento, como é o caso da psiquiatria e a loucura. Mas
ele se lança nesta empresa, o de
conhecer, enquanto um adversário ou aliado desta ou daquela corrente.
Interessante destacar isto em
Foucault, ou seja, ele tem uma
intencionalidade ... a história
há de ter sentido. Ora, por que a história humana há de ter sentido ?
Por que não simplesmente entender a história por ser o que é ? Passível de ser compreensível ao
momento que vira passado?
Mas
nada, absolutamente nada, este conhecimento sobre o passado nos credencia a vislumbrar o seu sentido de
tal modo que nos capacite a prever !
Para Foucault, conhecer e eficácia
política apresentam paralelos. Isto nos
ilumina bem a sua trajetória, mas seria tal posicionamento, tal método, adequado ?
O
conhecer não é um processo essencialmente infinito ? Caberia tutelá-lo em função de minhas posturas
políticas ? Por que ciente dos embates inerentes ao processo de formação de um dado campo de conhecimento,
aquele que estuda há de fazer parte do processo ? A rigor, esta atitude
combativa não é tão comprometedora ao críticado posicionamento de neutralidade
em relação aos processos que ajudam a compreender a formação de um dado campo
de conhecimento ?
Por fim, Foucault trabalha com a
dimensão do que venha a ser verdadeiro com o
que venha ser eficaz.
Na sequência da entrevista, fica
nítido o descompasso entre o entrevistador, no caso a revista, e o
entrevistado. Um descompasso marcado por uma sombra, a saber, Foucault teria
esquecido a geografia ?
A rigor, para Foucault, não
procede qualquer cobrança neste sentido;
em que pese argumentos do entrevistador de que Foucault estudou e elogiou
trabalhos de pessoas que muito se apoiaram na geografia , como Fernand Braudel.
Mas Foucault é muito firme, no que
então revela o seu projeto. Ou seja, ele
entende que o fato de elaborar uma consideração sobre arqueologia do saber,
este não deve ser algo essencialista que se deva então reconhecer arqueologia
do saber de todos os campos de conhecimento, inclusive o da geografia. Para
Foucault, a arqueologia é algo instrumental, tem relação com seu projeto de
poder ! Ele lá tem seus combates relacionados com medicina, psiquiatria e
penalidade.
O vértice do pensamento de Michel Foucault é o poder.
Na entrevista em tela, ele destaca que suas menções aos espaços, aos lugares
etc. têm uma moção dada pela visão de
que espaço tem a ver com poder; o conhecer o espaço tem a ver com o poder.
Reprovaram-me
muito por essas obsessões espaciais, e
elas de fato me obcecaram. Mas, através delas, creio ter descoberto o que no fundo
procurava : as relações que podem
existir entre poder e saber. Desde o momento em que se pode analisar em termos
de região, de domínio, de implantação, de deslocamento, de transferência,
pode-se apreender o processo pelo qual o saber funciona como um poder e
reproduz os seus efeitos. Existe uma
administração do saber, uma
política do saber, relações de poder que passam pelo saber e que
naturalmente, quando se quer descrevê-las, remetem àquelas formas de dominação
a que se referem noções como campo, posição, região, território. E o termo
político-estratégico indica como o militar e o administrativo efetivamente se
inscrevem em um solo ou em formas de discurso. Quem encarasse a análise dos
discursos somente em termos de continuidade temporal seria necessariamente
levado a analisá-la e encará-la como a
transformação interna de uma consciência individual. Construiria ainda uma grande consciência coletiva no interior da
qual se passariam as coisas. (1982, p.158)
Pela
passagem acima se percebe que Michel Foucault não é um geógrafo. Para
Foucault geografia é sintoma! “...Desde o momento em que se pode analisar o
saber em termos de região, de domínio, de implantação, de deslocamento, de
transferência, pode-se apreender o processo pelo qual o saber funciona como um poder ...” A
reflexão dele está marcada por uma certa bipolaridade, a saber, poder – saber.
Tudo mais gira em torno disto.
Inicia
seu trabalho a partir da questão relacionada à saúde e amplia a sua reflexão
com o tempo até chegar nesta espécie de teto, a saber, poder – saber. Neste
sentido, a geografia passa a ser uma reflexão corolária ao seu objetivo maior,
a questão do poder – saber. Ainda na
página 158, ele observa –
Metaforizar
as transformações do discurso através de um vocabulário temporal conduz
necessariamente à utilização do modelo da consciência individual, com sua
temporalidade própria. Tentar ao contrário decifrá-lo através de metáforas
espaciais, estratégicas, permite perceber exatamente os pontos pelos quais os
discursos se transformam em, através de e a partir das relações de poder.
(1982, p. 158)
Em seguida, a entrevista toma uma
nova forma ao discutir o livro – Vigiar e Punir (Foucault, 2013 a ) – e o
fenômeno do panoptismo, meio pelo qual tudo é observado. Nesta entrevista, a
então revista Herodote observa sobre Vigiar e Punir :
“...Com
o panoptismo, estamos além da metáfora. O
que está em jogo é a descrição de instituições em termos de arquitetura,
de figuras espaciais . Concluindo , você evoca até a “geopolítica imaginária”
da cidade carcerária. Essa figura panóptica dá conta do aparelho de Estado em
seu conjunto ? Surge, em seu último livro,
um modelo implícito do poder: uma disseminação de micro-poderes, uma
rede de aparelhos dispersos, sem aparelho único, sem foco nem centro, e uma
coordenação transversal de instituições e de tecnologias....” (1982, p. 159)
Sem
o querer, Michel Foucault chega à
geografia via panoptismo. A rigor, ele se ocupa com o poder, desta meta deriva
o seu encontro com o fenômeno do panoptismo que segundo suas palavras –
“Com o panoptismo, eu viso a um conjunto de mecanismos que ligam os feixes de
procedimento de que se serve o poder. O
panoptismo foi uma invenção
tecnológica na ordem do poder, como a máquina a vapor o foi na ordem da
produção...” (1982, p. 160)
No
panoptismo , temos a geografia ! E Michel Foucault reconhece isto.
Segundo ele, ainda sobre o panoptismo, “...Esta invenção tem de particular
o fato de ter sido utilizada em níveis inicialmente locais: escolas, casernas,
hospitais. Fez-se nesses lugares a experimentação da vigilância integral.
Aprendeu-se a preparar os dossiês, a estabelecer as notações e a
classificações, a fazer a contabilidade integrativa desses dados
individuais...” (1982, p. 160)
Michel Foucault faz uma observação
que me parece muito oportuna tendo em conta ainda a forte influência do
marxismo na geografia brasileira. [2]
O então entrevistador, da revista
Herodote, indaga Foucault se o caráter
pouco polemico da geografia não teria uma relação com o privilegiamento do
marxismo ao fator tempo e não espaço , no que então assevera Foucault “Marx, para mim, não existe. Quero dizer,
esta espécie de entidade que se construiu em torno de um nome próprio, e que se refere às vezes
a um certo indivíduo, às vezes à totalidade do que escreveu e às vezes a um
imenso processo histórico que deriva dele.
Creio que suas análises
econômicas, a maneira como ele analisa a
formação do capital são em grande parte comandadas pelos conceitos que ele
deriva da própria trama da economia ricardiana. O mérito de dizer isso não é meu, foi Marx mesmo quem o disse...” (1982, p. 163-164)
Por fim, ele termina a entrevista
destacando novamente o poder, chamando a atenção para a geografia– “Cada vez mais me parece que a
formação dos discursos e a genealogia do saber devem ser analisadas a partir
não dos tipos de consciência, das modalidades de percepção ou das formas de ideologia, mas das
táticas e estratégias de poder. Táticas e estratégias que se desdobram através
das implantações, das distribuições, dos recortes, dos controles de
territórios, das organizações de domínios que poderiam constituir uma espécie
de geopolítica, por onde minhas preocupações encontrariam os métodos de
vocês...” (1982, p. 164-65)
Agora, não ocorreria no pensamento
de Michel Foucault uma dimensão paranóica do
tipo – o poder, ah o poder, o
todo poderoso, que vai urdindo suas relações perversas, subvertendo a ordem,
eliminando os direitos constituídos .... ? Tal indagação tem relação com o modo
como o mesmo vê o panoptismo, ou seja, algo que veio a ser longamente
experimentado, a começar com pequenas experiências que vão sendo acrescidas por
outras. Se tal indagação procede , o que seria o poder para Foucault ? Um
processo ? Uma pessoa ? A questão é – parece que Foucault prima sua leitura
sobre a sociedade numa visão de que o poder determina ! Porém, no curso da
história, quantas vezes o poder não veio a ser deslegitimado a ponto de
desaparecer de forma inesperada (vide o que se deu na União Soviética e Leste
Europeu em história recente). Enfim, parece que falta a Foucault uma visão de
que nem tudo o poder pode. Por exemplo, a morte . O que o poder pode diante da
morte ? Nada ! Para concluir, a história humana, seja pessoal ou coletiva tem
muito de racional depois que ela
acontece mas, de forma alguma, pelo que foi conhecido se tem como prever o que acontecerá. Esta incerteza é marca da
ciência humana ! Assim, o analisar o poder, necessariamente há de ter um componente
que dê espaço para o imprevisível . Parece que Foucault não vai por este
caminho, ou seja, ele começa com um caso
relacionado à sua experiência profissional de vida (relação com o mundo
hospitalar) e dali vai aumentando seu horizonte, o panoptismo é um desses
grandes momentos de expansão. Porém, este grande momento não se vê comprometido
quando este o considera como a expressão do poder ? Não há outras formas de
poder ? Por exemplo, será que Foucault considerou o poder da oração ? Bilhões
de pessoas rezam , qual o seu efeito ? A oração tem relação direta com o
mistério da existência, isto não tem poder ? Haveria um panoptismo do mundo interior para fora ? Em resumo, a
análise de Michel Foucault é brilhante, porém peca (como tantas outras ) por tender
a entender que o seu achado é a determinação principal dos fatos sociais.[3] A
rigor, corrobora, o poder não se esgota nem se ultima no panoptismo, a
existência do poder continua refém da situação de meios escassos diante de
demanda crescente; no dia que tivermos
meios suficientes para todos, tal como o
ar que respiramos, então o poder deixa de existir; até lá, este se opera de várias
formas, inclusive pelo panoptismo.
Michel Foucault é muito voltado à
esta questão do poder. Por exemplo, neste trabalho que ora acompanhamos
(Micro-física do poder), capítulo
Geografia, Foucault assevera que “...O indivíduo
com suas características, sua identidade , fixado a si mesmo, é o produto de
uma relação de poder que se exerce sobre
corpos, multiplicidades, movimentos, desejos, forças.” (Foucault, 1982, p.
161-62)
Sobre
esta questão do poder, numa visão bem diferente ao apresentado, cabe lembrar
os textos - História como sistema – e – Mirabeau ou o político – de Ortega y Gasset pela editora Universidade
Brasília em 1982.
A
idéia central de Ortega, sobre a sociedade, é a de que esta é um sistema de
convivência baseado no enquadramento das pessoas, e de suas atividades
especificamente pessoais, por um conjunto de normas que disciplinam,
anonimamente, as condutas que a coletividade em geral, “a gente”, considera
apropriada para determinadas circunstâncias ou para certos tipos de pessoas.
A
sociedade herda, de suas origens
remotas, um determinado núcleo cultural, que se expressa através de uma língua
e contém um repertório fundamental de crenças, que se refletem na própria
língua e em diversos usos. Esse núcleo cultural, como tudo o que é social, é
algo de histórico, que se modifica no curso do tempo, mas dentro de uma
continuidade básica, assegurada pela
tradição. Esta, entretanto, é , às vezes, sujeita a alterações mais bruscas e
profundas, por certos eventos, como as revoluções religiosas ou
político-sociais , as grandes inovações científico-tecnológicas, as modas
estéticas, e outros fatores de aceleração do ritmo da mudança social.
Dentre
os elementos que integram a tradição de
uma sociedade, num momento histórico dado, se encontram seus usos, alguns,
formalizados em normas e preceitos que
compõem a ordem jurídica dessa sociedade e outros, informais, mas não menos os
vigentes, que compõem o repertório “do que se deve fazer” . Assim as normas que
disciplinam o vestir, estabelecendo distinções em função do sexo, da idade (p.
19) , da classe social. Assim os usos que regulam os rituais, como o
cumprimento, as condolências fúnebres, as congratulações natalícias, etc.
O
essencial do “social”, como expressão das crenças ou propósitos da “gente”, por
oposição a opiniões e decisões de pessoas específicas, é, para Ortega, o fato
de o social ter uma vigência própria, independente do consenso de cada qual,
quer se trate do social institucionalizado, sob a forma de uma norma ou de uma
agência pública, quer se trate do social informal, como os elementos da cultura e os usos e
costumes. (Helio Jaguaribe em prólogo para as obras reunidas – História como
sistema – e – Mirabeau ou o político ; ambos de Ortega y Gasset , 1982, p.
18-19)
[4]
Enfim,
poder não é necessariamente ruim ! Não
há como vivermos prescindindo do poder. Somos marcados pelo poder. A começar
pelo próprio poder da morte ... poder do envelhecimento ... poder da gravidade
...
Na edição brasileira aqui utilizada
de Micro-física do poder, a de 1982,
Roberto Machado elabora uma interessante introdução. Nesta, ele observa
que Foucault começa seus estudos voltado
para compreensão do início da
psiquiatria. Por este prisma advem a noção de a evolução da ciência não segue
uma ordem linear. A inovação de Foucault à época, 1961, foi justamente o de
querer estudar a loucura pelo prisma da intelecção que se fazia sobre a mesma,
ou seja, não se tratava de estudar o louco mas o modo como se passou a se
considerar de que há loucura. (p. VII)
Ainda, Foucault não ficava restrito
ao discurso, aos dizeres, procurava analisar (daí sua relação direta com a
geografia) os espaços institucionais voltados justamente para fazer face o
que era então objeto de estudo, no caso, a loucura. Correlato aos discursos, Foucault
analisava como os médicos se relacionavam com os pacientes em dados espaços.
Assim “...Articulando o saber médico com as práticas de internamento e estas
com instância sociais como a política, a família , a Igreja, a justiça,
generalizando a análise até as causas econômicas e sociais das modificações
institucionais, foi possível mostrar como a psiquiatria, em vez de ser quem
descobriu a essência da loucura e a libertou, é a radicalização de um processo de dominação do louco que
começou muito antes dela e tem condições de possibilidade tanto teóricas quanto
práticas.” (p. VIII)
O
livro – Palavras e as coisas – ainda segundo Roberto Machado, pode ser
considerado um marco no pensamento de Foucault porque enfatiza a dimensão
teórica de sua obra. E faz isto a partir da consideração da arqueologia dos
saberes, ou seja, compreensão da constituição das ciências humanas via interrelação de saberes e a base conceitual. (p. IX)
Michel Foucault foi um intelectual
voltado para a questão do poder. Ele inovou a temática ao enfatizar dimensões
do poder que até então pouco mereciam importância. O poder micro, o poder nos
saberes, o poder na perspectiva da origem dos discursos. O poder no sexo, o
poder na clínica, enfim, ele ampliou o
espectro das nossas considerações sobre as dimensões do poder. Em última
análise, a sobrevivência do capitalismo está justamente nesta variedade de
formas que não coincidem , necessariamente, com repressão. O poder seduz,
induz, não é só porrete ! (p. XIV, XV)
Agora, neste resumo apresentado por
Roberto Machado, há uma observação sobre
a obra de Michel Foucault que chama a atenção ... “É então que surge uma das teses fundamentais da
genealogia : o poder é produtor de individualidade . O indivíduo é uma produção
do poder e do saber” (p. XIX) De certo
modo, esta observação explicita a consideração acima de Michel Foucault
entender o ser humano como se fosse uma cebola, ou seja, descasca e não há
núcleo, essência. Esta concepção de individualidade vai nesta direção. Foucault
entende, não deixa de ser genial esta intuição, de que o poder não visa apenas o atacado, a paz social
por exemplo, mas se sabe que para se chegar a este atacado é necessário um
varejo, ou seja, o poder visa o
indivíduo. A prisão, com isolamento total ou parcial, é um exemplo disto ! O hospício outro
exemplo.
Agora,
a questão é : o indivíduo se torna
indivíduo tão somente a luz do poder ?
Em resumo – ponto para Michel
Foucault ao vislumbrar que o poder não é só grande estrutura, grande ordem, mas
também uma série de capilares que vão percorrendo o tecido social. No entanto,
isto é suficiente para entendermos indivíduo ?
Penso que o ser humano se torna ser humano quando se
descobre mortal ! A mortalidade nos infunde uma impressão, uma indagação que vai
muito além das circunstâncias às quais ele está inserido. A morte nos
individualiza, muito mais que o poder ! Foucault não considera a morte, ele reforça muito a
dimensão do poder.
Michel
Foucault e seus espaços
A
prisão – via Vigiar e punir [5]
Para um geógrafo, vale comentar a
obra a partir das imagens que lhe são acompanhadas logo em suas primeiras
páginas.
As
imagens versam sobre disciplina. Disciplina de várias formas, com vários
intentos.
Agora,
o ser humano pode viver sem disciplina ? Em princípio não ! Não somos como as
moscas, os cavalos ou gatos, tendo nascido já contam com uma série de tarefas
pré-concebidas. Cada ser humano é uma interrogação e isto se deve à sua
natureza pela qual se determina ! Escolhemos nossas roupas, nossos relacionamentos,
nossos estudos. Escolhemos. Naturalmente, quanto maior a nossa base material,
tanto maior o universo de nossa de escolha. Mas o ser humano, mesmo o mais
fraco e pobre tem poder de escolha, ao menos no que deseja pensar (na
inexistência deste, temos então a configuração de uma patologia).
Parece
que a grande questão desta obra é o da liberdade !
Foucault
almeja a liberdade. Ele tem toda a forma de regulação como algo intrinsecamente
ruim. Fico a imaginar, como ele próprio poderia ter alcançado a produção
bibliográfica que ele alcançou sem disciplina. Ainda, como ele poderia ter
alcançado o nível de acuidade na análise do poder sem uma forte disciplina ?
A
disciplina não é ruim. É necessária, precisamos dela !
Parece que o livro – Vigiar e punir
– não tem este discernimento ! Para ele, a disciplina, em si, é ruim ! Uma das
palavras mais utilizadas no texto é -
suplício.
Foucault elabora uma leitura muito
interessante e penetrante sobre a questão da regulação do corpo. Porém, ao
generalizar o processo de uma forma tal, fica a mensagem subjacente de que o
corpo humano há de alcançar plena
vigência sobre si mesmo.
Agora
, por exemplo, um assassino; por mais terrível que seja a prisão, esta não vem
a ser algo menos aterrador que a morte
que o assassino infringiu a terceiro ?
O trabalho do Foucault trás uma
análise instigante sobre o vigiar e o punir, assim, em que termos se tem a vigilância e a punição
? De certo modo, o trabalho de Michel Foucault nos civiliza, ou seja, dá voz a
toda uma parte da população que se encontra moldada em estritas regras de
sobrevivência, como ocorre na prisão
(poderíamos também considerar a clínica) que até então nunca foram objeto de
uma plano maior de reflexão tal como elaborado por Foucault.
O
nascimento da clínica[6]
O livro, para um geógrafo, começa de
forma plenamente promissora.
Já em seu prefácio, Michel Foucault
assinala – “Este livro trata do espaço, da linguagem e da morte ; trata do olhar”.
Promissora e já de forma comprometedora, ou seja, a questão
não é o espaço enquanto uma dada realidade, mas o olhar sobre . O objeto é a intelecção com a
qual se vê .
Daí se segue uma avalanche de dados
históricos. Para tanto muito contribuiu a própria estrutura institucional da
França em preservar suas memórias apesar dos vários cataclismos que atingiram
este país sob a forma de guerras e invasões ao longo dos séculos. [7]
Na sequência da leitura se percebe
claramente de estarmos diante de um
estudo muito original, seja pelo tema que trás assim como pelo olhar que
utiliza. Por exemplo, na p. IX do prefácio , sobre a psicanálise , Michel
Foucault indaga – quanto à linguagem, a partir de que momento, de que
modificação semântica ou sintática pode-se reconhecer que se transformou em
discurso racional ? [8]
Para Foucault , a clínica em sua
fase original ... “é , ao mesmo tempo,
um novo recorte das coisas e o princípio de sua articulação em uma linguagem na
qual temos o hábito de reconhecer a linguagem de uma “ciência positiva”.
(Prefácio, 2013, p. xvii)
A clínica é a articulação de coisas
em termos de uma linguagem. O foco de Foucault é a linguagem, não a coisa que
justifica a existência da linguagem (a linguagem existe para nos comunicarmos
tendo em conta o que há ao nosso redor).
Ao término do prefácio, está um
parágrafo que merece uma reflexão, a saber : “O que conta nas coisas ditas
pelos homens não é tanto o que teriam pensado aquém ou além delas, mas o que
desde o princípio as sistematiza, tornando-as, pelo tempo afora, infinitamente
acessíveis a novos discursos e abertas à tarefa de transformá-los.” (2013, p.
xviii)
O que isto significa ?
A frase lembra Karl Marx – não basta
compreender o mundo mas cabe transformá-lo.
Parece que com o tempo, com o
avançar do anos, Michel Foucault iria se concentrar nesta tarefa que
consideraria maior, o de transformar o mundo numa perspectiva libertária com
total ojeriza à cultura ocidental.
Agora, uma questão : Michel Foucault
seria um filósofo, cientista social ou um político ?
De certo modo, tal pergunta não tem
razão de ser, afinal , Michel Foucault é Michel Foucault ! Uma indagação sobre
o que ele seria, corresponde a um corrente esforço de classificarmos as pessoas
e as coisas. No entanto, tal esforço, não raro, fragiliza a nossa percepção
quanto à riqueza da realidade. Michel Foucault literalmente corresponde a uma
novidade intelectual no cenário francês; tendo sido reconhecido já em vida.
Voltemos à clínica !
Em seu primeiro capítulo, temos uma
reflexão sobre espaço e classes a partir de um ponto de partida bem original, a
saber, uma reflexão sobre o corpo.
O corpo, base das doenças, sem o
qual não há doença ! Ele fala em geografia da anatomia ... (um filão que começa
a ter ressonância na geografia atual).
Agora, se nota um problema na sua
leitura, a saber, não é claro ! Segue um
parágrafo a título de exemplo :
A
coincidência exata do “corpo” da doença com o corpo do homem doente é um dado
histórico e transitório. Seu encontro só é evidente para nós, ou melhor, dele
começamos apenas a nos separar. O espaço de configuração da doença e o espaço
de localização do mal no corpo só foram superpostos, na experiência médica,
durante curto período: o que coincide com a medicina do século XIX e os
privilégios concedidos à anatomia patológica. Época que marca a soberania do
olhar, visto que no mesmo campo perceptivo, seguindo as mesmas continuidades ou
as mesmas falhas, a experiência lê, de um só vez, as lesões visíveis do
organismo e a coerência das formas patológicas ; o mal se articula exatamente
com o corpo e sua distribuição lógica se
faz, desde o começo, por massas anatômicas. O “golpe de vista” precisa apenas
exercer sobre a verdade, que ele descobre no lugar onde ela se encontra, um poder
que, de pleno direito, ele detém. (Foucault, 2013, p. 1-2)
Ora,
como podemos pensar em – coincidência do corpo da doença com o
corpo do homem doente como um dado
histórico e transitório ? A rigor, Foucault não está tratando da doença e de um
corpo doente ; mas sim a concepção de que algo é doença e de que algo é corpo
doente ; daí ele entender que estas noções são históricas e transitória.
Ainda, soberania do olhar ... Je pense que ... Acredito que ele se
refere ao primado da observação, do exame, do teste clínico. O olhar no lugar,
por exemplo, da crendice, do tipo ...
castigo de Deus.
Agora, sendo o observado nos
parágrafos acima, Michel Foucault não poderia ter sido mais claro em sua
redação ?
Ortega Y Gasset já afirmava – La
claridad es la cortesia del filosofo .. apud Llosa, 2010, p. 32. Quando temos
em conta textos clássicos de Platão, Rousseau ou Marx , há em comum entre eles
a clareza; agora, Foucault, Edgar Morin ou Milton Santos, não pouca vezes os
textos não são claros! Parece que há entre estes últimos uma implícita
familiaridade com a concepção de desconstrução
do texto. Na obra – Filosofia francesa –
de François Cusset (2008), temos uma de caracterização desta linha pensamento.
Continuando a leitura !
Ora, em seguida, até o final do capítulo I ( Espaço e classes ) temos uma
espécie de discussão filosófica sobre a doença; por exemplo, o termo classe no título do capítulo
tem relação com classificação, classificação
de doença. Sinceramente não sei se é apropriado uma reflexão filosófica da
doença, a menos que a pessoa seja do ramo segundo o qual não há realidade, o que há são versões da
mesma , cabe assim inquirir as bases que sustentam a sua forma de conceber; a
realidade se torna um objeto que a pessoa constrói.
Ora, para quem como eu, autor destas
linhas, já enfrentou um câncer através
de 28 sessões de quimioterapia não existe esta de filosofia da doença. Doença é
doença! Ela não atua conforme você a concebe, ela simplesmente atua. Não
desconheço que a partir do modo como se concebe a doença , se comete vários
equívocos, inclusive com resultados letais; mas, o modus operandi de uma doença, como câncer, ou sarampo, é
inalterável.
O livro continua com uma imensa
digressão sobre doença. Mas parece ser uma digressão de quem desconhece o que é
doença!
Sobre o assunto , há um discurso de
Mário Vargas Llosa intitulado “Breve discurso sobre cultura” que veio a ser
transcrito na Revista Discta & Contradicta.
Nele Llosa observa sobre Michel Foucault – “...em sua paranóica denúncia
dos estratagemas de que segundo ele se valia o poder para submeter a opinião
pública aos seus ditames, negou até o final a realidade da AIDS, a doença que o
matou...” (2010, p. 19) .
No limite, ao final de seus dias, para Foucault, o
mundo era um conceito, no qual colocou todo seu empenho intelectual, porém,
desconhecendo aquela máxima de Shakespeare em Hamlet– “Há mais coisa no céu e
na terra, Horacio, do que pode sonhar tua filosofia.” (Hamlet, primeiro ato,
cena V).
Não deixa de ser uma situação dramática, tal como
observado pelo próprio Mário Vargas Llosa. Michel Foucault sempre foi afeito
aos estudos factuais, a própria obra – Vigiar e punir – como se inicia, é um
potente exemplo desta linha; porém, este apuro metodológico não lhe foi o
bastante para lhe fazer reconhecer o fenômeno
da AIDS, inclusive em seu próprio corpo. [9]
Sobre este aspecto do comportamento
de Michel Foucault, convém termos mais elementos. Por exemplo,
na revista Filosofia (ano VII, n. 92, março de 2014) há um artigo
intitulado – A parrhesia cínica e a verdade como escândalo – do professor
Rogério Luis da Rocha Seixas (2014, p. 17-24) . Deste artigo extraio dois
trechos.
“O
tema da “vida verdadeira” – alethés bíos – pode ser retratado por outro
episódio da vida de Diógenes, o cínico, narrado por Diógenes Laércio : aquele
teria recebido a missão divina para “falsificar o valor da moeda”. Se, por um lado, existe uma aproximação entre
moeda e costume, por outro significa que é possível trocar a efígie da moeda por outra, permitindo que ela circule
com seu verdadeiro valor – a moeda verdadeira. Foucault vê , nessa metáfora,
uma espécie de passagem ao limite, a uma extrapolação da vida verdadeira –
“alterar o valor da moeda” está ligado à
qualificação de cão (adjetivação que Diógenes empregava para si mesmo), e que
passou a identificar o cinismo, como vida sem
pudor, sem respeito humano, que faz em
público e aos olhos dos outros o que somente os cães e outros animais
ousam fazer e que mesmo os homens mais ordinários procuram esconder. Por esse
motivo, o bios do cão é a indiferença; mais propriamente com respeito à
parhesia cínica, seria a provocação e a intervenção de modo crítico, para
causar uma mudança de conduta dos outros.” (Seixas, 2014, p. 20)
Segundo
trecho
A
parrhesia cínica se configura, assim , como uma extrapolação, uma reversão, tão
singular que se coloca, de fato, como
uma vida filosófica marcada pela ruptura e contraposição às estruturas de
poder. Demonstra-se a coragem, mais pontual e intensa, da provocação , da
insolência e do escândalo. Uma coragem
de constituir-se como um estilo de existência, marcado pela prática de viver o
dizer verdadeiro em seu extremo; buscando
uma vida soberana, marcada por um intenso governo de si e, por esse
motivo, capacitado para governar outros.
Um ponto importante a ser ressaltado: a
intensidade dessa vivência de uma vida soberana. Foucault vai afirmar,
remetendo-se mais uma vez à figura de Diógenes, o cínico, que ele é mais rei do que Alexandre , o Grande. Como
assevera o autor : “O próprio cínico é
um rei, ele é , de fato, o único rei. Os soberanos coroados, os soberanos
visíveis de certa forma não são mais do
que a sombra da verdadeira monarquia. O cínico é o único rei verdadeiro. E, ao
mesmo tempo, em relação aos reis da
terra, aos reis coroados, aos reis sentados em seu trono, ele é o antirrei, que
demonstra o quanto a monarquia dos reis é vã, ilusória e precária”. ( M.
Foucauld , Le suject et le pouvoir , 2001, apud Seixas, 2014, p. 19). (Seixas,
2014, p. 19)
A
história da loucura [10]
A obra corresponde à sua tese de
doutorado.
É um grande momento de sua fase
enquanto historiador que encontrou em Fernand Braudel um grande incentivador. [11]
É um livro que começa tratando de
doença. Em seguida, a forma como a mesma veio a ser analisada e combatida.
É uma obra que demonstra o quanto de trabalho Michel Foucault realizou
para elaborar sua tese de doutorado. No
entanto, na edição que contamos, que diante da demanda de se elaborar um
novo prefácio para a obra, o próprio a considera como velha – “Deveria escrever
um novo prefácio para este livro já velho” ... (Prefácio , ed. brasileira de
2010). Ora, o que isto significa ? Isto acusa a profunda mudança do autor em
tempo relativamente pequeno. Parece que a obra, em seu momento original, era
sobretudo um trabalho histórico, mas
ao longo do tempo se fez ser considerado como um trabalho de filosofia
moderna. E Michel Foucault trata este
trabalho como velho, ou seja, suas concepções de filosofia propriamente
já se encontravam bem evoluídas em relação a este estágio dado pela tese de doutorado.
Mas e o espaço
?
Há um espaço implícito,
não explícito, ou seja, o dentro e fora da clínica e seus respectivos
códigos mutáveis que justifiquem que alguns fiquem dentro da clínica e outros
fora dela.
Agora, é um precioso trabalho
histórico empapado de geograficidade. Certamente dá margem para uma fecunda
reflexão sobre relação história e geografia.
As palavras e as coisas : uma arqueologia das ciëncias
humanas[12]
Por fim, uma reflexão
sobre a obra – As palavras e as coisas.
Insiro a presente parte
para constar do artigo, embora não veja
serventia em tal inserção. Serventia para quem analisa a relação geografia e
Michel Foucault. Certamente haverá quem discorde, assim, registro uma
observação sobre esta obra em atenção a
quem pense diferente ao que até aqui foi expresso. Cabendo a este, não a mim, a incumbência de
como a obra – As palavras e as coisas – pode auxiliar na compreensão da relação entre geografia e Michel Foucault.
[13]
A
leitura da mencionada obra não é das mais fáceis, necessitei de um apoio
que veio a ser encontrado no livro Introdução ao Pensamento Epistemológico
de Hilton Japiassu que apresenta um capítulo sobre este pensador, destacando
exatamente a contribuição desta obra.
Dada a necessidade de tornar concisa
a presente exposição para deitarmos maior atenção na cientificidade da
Geografia, objeto de nosso trabalho, iremos a seguir destacar aspectos sobre a
ciência humana explorando com maior intensidade o último capítulo do livro de
Michel Foucault.
·
O Espaço Epistemológico das ciências humanas
As ciências humanas não tiveram como
as demais ciências uma herança advinda antes do século XIX, ela é muito
recente. Não houve até este século uma determinação de seu domínio. (Foucault,
1992, p. 361 )
O aparecimento desta ciência tem uma
imediata correlação com a época da Revolução Industrial. A emergência de se
figurar uma nova forma societária, com novo tipo de relações sociais, novas
formas de vigilância, de se comportar, etc.. infringiram na sociedade
determinadas estruturas de poder que passaram a ter melhor eficiência, caso
esta mesma sociedade fosse mais bem conhecida. (Foucault, 1992, p. 362 )
O debruçar sobre o homem pela
primeira vez na história humana forjou uma reordenação no campo da episteme . O campo moderno da episteme já não está mais atrelado a uma
matematização perfeita ou de uma hierarquia formal entre os diferentes saberes,
ele vem a ser um espaço aberto segundo três dimensões formando uma espécie de
“triedro dos saberes” que definiria o espaço epistemológico da constituição das
ciências humanas.(Foucault, 1992, p. 364)
Este triedro, com suas dimensões,
contam com três eixos, a saber: A ) o eixo das Matemáticas e Psicomatemáticas,
ciências exatas e protótipos da cientificidade; B ) o eixo das Ciências da
Vida, da Produção e da Linguagem: Biologia, Economia e Ciências da Linguagem, C
) o eixo da Reflexão Filosófica propriamente dita. (Japiassu, 1991, , p. 114)
Entre estes eixos há os seguintes
planos: o das Matemáticas Aplicadas entre os eixos A e B, o da Formalização do
Pensamento entre os eixos C e A, e o plano das Ontologias Regionais entre os
eixos C e B . Vide figura proposta por Hilton Japiassu (p. 114 ) retratando o
sistema de constituição das ciências humanas.
Por este modelo as Ciências Humanas
não estão em nenhum dos eixos ou dos planos. Elas estão no interstício do
saber, participando de modo diversificado das três dimensões do saber. Pela
figura proposta, Hilton Japiassu as representa como uma nuvem pairando sobre o
triedro. Esta nuvem tem três núcleos formados por características comuns e
formas de organização ( 1- o psicológico, 2- sociológico e 3-o lingüístico ).(
Japiassu, 1991, p. 115 )
Estes núcleos são espécies de pólos
de regiões da Ciência Humana. A região das ciências psicológicas toma da
Biologia empréstimo um modelo pautado nos conceitos de “função” e de “norma”. A
segunda região, a das ciências sociológicas, toma da Economia Política um
modelo que gira em torno dos conceitos de “conflitos” e de “regras”. A terceira
região é das ciências Lingüísticas e Culturais que toma da ciência da linguagem
um modelo apoiado nas idéias de “sentido” e de “sistema”.( Japiassu, 1991 ., p.
116 )
No entanto, a configuração destas
três regiões do espaço epistemológico da ciência humana não está solidificada,
pois estas regiões estão inseridas na História e só compreendidas a partir de
um conteúdo histórico. Além disso, cada região vem habitada por práticas
deletérias que comprometem a sua configuração enquanto corpo científico, Tais
práticas decorrem de inquietações quanto ao volume já adquirido e partir disto
há a busca de novos encaminhamentos, como é o caso da Psicanálise em relação à
Psicologia, ou ainda a Etnologia em relação à Sociologia. (Japiassu, 1991 ,p.
116)
·
Objeto das ciências humanas
O homem para as ciências humanas não
se define a partir de uma busca de sua natureza, mas sim pelo que ele é em sua
positividade (ser que vive, trabalha, fala) e que o permite a conhecer o que
vem a ser a vida. As ciências humanas ocupam o espaço entre a biologia, a
economia e a filologia, no entanto, as ciências humanas não as absorvem .
(Foucault, 1992, pp. 370-371). O campo das ciências humanas, além do próprio
objeto, viria a ser a representação (Foucault, 1992, p. 380).
Caberia neste momento novamente
recorrermos ao trabalho de Hilton Japiassu.
Foucault ao analisar a episteme ocidental vislumbra três
grandes momentos “...a época da Renascença (séc. XVI), a época clássica da
ciência e das Luzes ( séculos XVII e XVIII ); e o período que se inicia com o
século XIX (1820) e que vem até nós”. (Japiassu, 1991, p. 117-118)
Das três épocas, ele analisa,
detalhadamente a segunda, da qual as ciências humanas ainda não saíram e que é
a seguir destacado.
A época clássica, por sua vez, é
analisada por Foucault a partir do termo representação .Esta além de
signo é também um fato mental, um registro epistemológico próprio constituído
não só por uma percepção clássica do termo, tal como concebido por Descartes,
mas perceptível nas formulações da matemática e da física do século XVII ( que
vem inspirada por uma mathesis
universalis; é como se houvesse a busca de uma grande lógica do universo ).
(Japiassu, 1991, p. 119)
O signo é uma das principais
diferenças entre o período clássico e o anterior, o signo no período clássico
não é algo que esconda alguma mensagem eterna, pelo contrário, a sua lógica
muda constantemente; a economia dos signos é binária,
representante-representado, este quadro imbrica numa relação indissociável
entre significante-significado, pelo qual a compreensão de algo passa pela
reflexão sobre os signos que o indicam; a ciências dos signos atua como um
discurso do significado do que se procura compreender (Japiassu, 1991, pp.
119-120).
Mas, há um esforço de normatização
no decorrer deste período clássico que tem uma direta incidência no espaço das
ciências humanas. A ciência clássica (física e matemática) organiza-se como
a própria mathesis, marcada pela
ordem, que vem a ser o princípio distintivo de toda a economia da
representação, nela está as conveniências das “naturezas simples”, da álgebra
ou da análise matemática. Porém, para além da ordem, surgirão dois novos
segmentos de organização do conhecimento: o primeiro, taxinomia, e o
segundo o estudo da ordem das produções e dos desenvolvimentos constitutivos no
tempo (estudo das gêneses). (Japiassu, 1991, p. 120-121).
Está assim configurado uma
espécie de trinômio constituído pela mathesis,
taxinomia e estudo das gêneses - entre a mathesis e a gênese estaria a
região dos signos que atravessam o domínio da representação empírica mas não a
supera . Nesta mediação entre o cálculo e a gênese é que aparecem “...os
primeiros núcleos desse saber em referência aos quais começam a se constituir
as ciências humanas” (Japiassu, 1991, p. 121).
·
Ciência Humana, uma ciência?
Sendo a representação o próprio
campo das ciências humanas, há duas conseqüências, a saber: não houve nas
ciências humanas, como ocorreu nas ciências empíricas e no pensamento moderno,
a superação do primado da representação; a segunda é “...que as ciências
humanas, ao tratarem do que é representação ( sob uma forma consciente ou
inconsciente ) estão tratando como seu objeto o que é sua condição de
possibilidade... Vão do que é dado à representação ao que torna possível a
representação, mas que é ainda uma representação. De maneira que elas buscam
menos, como as outras ciências, generalizar-se ou precisar-se do que
desmistificar-se sem cessar : passar de uma evidência imediata e não-controlada
a formas menos transparentes, porém mais fundamentais “.(Foucault, 1992, p.
381).
Dado o exposto, Michel Foucault
entende que não há ciências humanas, que elas vêm a ser falsas ciências; e interpreta
que o uso do termo ciência para qualificar o seu discurso decorre do uso, por
empréstimo de modelos advindos de outras ciências. Sob o nome de homem, foi
constituído algo que deve ser domínio do saber e não objeto de ciência.
(Foucault, 1992, pp. 383-384).
Ele entende ainda, por exemplo, a
Economia não ser uma ciência humana. Esta aufere as suas leis a partir dos
mecanismos da produção e mesmo quando recorre aos comportamentos humanos
(originados pelo interesse), ele utiliza as representações como requisito de uma
atividade humana (Foucault, 1992, pp. 369-370).
·
Conclusão parcial para o Trabalho
Se há algo que marca o conteúdo de
um discurso científico é a disposição para indicar cenários precisos tendo em
vistas as leis encontradas nos diferentes ramos do saber.
Se podemos passar por uma ponte, ou
viver num prédio, ou ainda dirigir um carro sem que sejamos surpresos com o
livre arbítrio destes conjuntos materiais, é porque as suas construções estão
coadunadas a uma lógica de comportamento regular no tempo e no espaço. A
apreensão desta lógica de comportamento, mesmo sendo precária, às vezes, é
trazida pelo conhecimento científico dos componentes materiais destas
construções.
Ao contrário da Física, por exemplo,
quando as leis do movimento de Isaac Newton do século XVII têm utilidade até
hoje, podemos indicar que a falta de prognoses seguras no âmbito da ciência
humana é algo que a compromete para qualificá-la enquanto ciência no estrito
sentido do termo.
Não há ciência humana, embora
instintivamente há uma reação à esta afirmação, pois vivemos numa sociedade
tecnologizada na qual o grande parâmetro da veracidade está calcado na ciência.
Só que esta ciência nos moldes cartesianos, que de fato inaugura a ciência
moderna, passa por uma fortíssima crise de tal forma que oferece novas formas
de legitimar o saber.
A sociedade contém uma
normatividade, mas por que a mesma não é repetida indefinidamente ?
Consideremos dois motivos.
Primeiro, ao contrário de outros
seres ou coisas existentes, o ser humano passa a sê-lo através de um
aprendizado, ele aprende os costumes, valores, condutas que vai passar a ter.
Logo, o regrar-se não é fundamentado num código genético mas sim por um processo
social relativamente lento, que demora anos, e que a rigor o acompanha até a
morte. Neste longo aprendizado, que é a ciência do viver, há várias
oportunidades para ter comportamentos, iniciativas totalmente distintas de seus
antepassados. Repare que o processo de aprendizado da pessoa humana é distinto
dos demais seres vivos, pois ela adquire, inala as influências externas
mediadas por um processo auto conscientizador, ou seja, o processo de
aprendizagem não é homogêneo, é peculiar, heterogêneo, de acordo com as
capacidades, interesses e as próprias circunstâncias que cercam o indivíduo.
Outro aspecto diz respeito a
finitude da vida, Tal aspecto marcante e dramático desta aventura na Terra
encerra chances contínuas de mudanças. Pois aquele que nasce não deverá ter as
mesmas responsabilidades daquele que está partindo.
Ao término destas linhas, observo que não sou fã de Michel Foucault,
como existem (e tantos) , porém, desta última obra aqui apresentada (Palavras e
as coisas), e tendo em conta a entrevista com a qual começamos a reflexão que
originou o presente artigo (sobre o seu olhar sobre geografia), a questão da
arqueologia da geografia está em aberto, e ele, Michel Foucault, se recusa em
fazê-lo como está explícito na entrevista, mas convida que os geógrafos o
façam; assim, reforço o que Foucault espera dos geógrafos. A questão da arqueologia, ao modo como Foucault a fez,
abriu uma rica e fecunda maneira de olhar a geografia.
Conclusão
A impressão que dá é : fizeram Foucault maior do que de fato é !
Ele tem uma vereda, um percurso analítico que se transforma numa consideração
epistemológica , mas só ! Ele tem um
caminho ditado por uma dada circunstância, e a partir dele se vislumbra toda um
cenário reflexivo que ele não almejou alcançar que isto viesse a corresponder a
uma certa totalidade, tal como o pensamento marxista sempre almejou.
Michel Foucault é um homem, um pensador, mas que concretamente
nunca deu margem para que em torno dele
se constituísse um sistema, tipo, foucaultismo ... Foucault trás um contributo
e o apresenta. Mas fazer desse legado
algo que ele não almejou, o de ser, por
exemplo, uma nova base cognitiva de reflexão sobre os saberes. A cobrança sobre
ele na entrevista promovida pelo Hérodote e
o modo como ele reage demonstra
esta dualidade. Mais ou menos ele disse
– cabe aos geógrafos se mexerem !
Ao ler o volume – Cartografias de
Foucault – correspondente a reunião de parte do que foi discutido no IV Colóquio Internacional Michel Foucault
realizado na cidade de Natal em 2007, temos a noção de que também a vida dele,
a vida de Foucault , é também uma fonte
inspiradora, ou seja, além dos escritos, o seu comportamento se torna matéria
de reflexão. É como se a morte que lhe negara continuar escrevendo viesse a ser superada por aqueles que passaram a se
voltar não só aos seus escritos mas também ao seu agir.
Para terminar – na obra A verdade e
as formas jurídicas de Michel Foucault (2013), no qual se encontra uma
mesa-redonda com intelectuais brasileiros - o autor diante da pergunta de
Afonso Romano de Sant’Ana sobre o que
tinha escrito ele assevera : “É preciso ressaltar que não endosso sem
restrições o que disse nos meus livros ...” (2013, p. 151)
O pensamento de Michel Foucault é mutante. De certo modo, este se
encontra além de quando o mesmo foi registrado.
Fonte
bibliográfica
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trad. Selma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1992
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Trad. Roberto Machado , 7 ed. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2013b.
FOUCAULT, Michel – A verdade e as formas
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2013c.
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Coelho Neto . São Paulo : Ed.
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HUSSERL, Edmund . La crise des sciences
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LLOSA,
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SEIXAS,
Rogério Luiz da Rocha – A parrehesia
cínica e a verdade como escândalo In Rev. Filosofia , ciência e vida, ano VII, n. 92, março de 2014, p. 17-24 .
[1]
FOUCAULT,
Michel – Micro-física do poder . Trad. e org. Roberto Machado . 3. ed. Rio de
Janeiro : Ed. Graal , 1982.
[2] Ainda hoje, fevereiro de
2014, crítica a Marx numa sala de aula
composta por alunos de geografia não raro
é vista como ofensa pessoal.!
[3] Algo semelhante poderíamos pensar sobre Sigmund Freud e o modo como o mesmo valoriza o sexo; ou ainda, Karl Marx, o modo como ele valoriza o econômico..
[4] Ao contrário de Michel Foucault (e Jean Paul Sartre), que tiveram em seu país o devido reconhecimento ainda em vida; Ortega y Gasset teve poucos interlocutores em sua terra, a Espanha.
[5]
FOUCAULT,
Michel – Vigiar e punir . Trad. Raquel Ramalhete . 41. edição. Petrópolis (RJ)
: Vozes, 2013 a .
[6]
A
referência é - FOUCAULT, Michel – O nascimento da clínica .
Trad. Roberto Machado , 7 ed. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2013 b .
[7] Quando estive em Paris ,
chamou-me a atenção isto – uma cidade ferida pela guerra ! Há duas Paris,
aquela que tanto amamos, da arte, da cultura, da elegância ... e há uma outra ,
amarga, que teima lutar contra sua raiz cristã.
[8] Ora, esta pergunta, a seu tempo (déc. de 60 ) , é simplesmente genial ! Quem poderia pensar a psicanálise nestes termos ? Ainda, articulando-a com a questão do espacial ?
[9] Considero que o grande sucesso
de Michel Foucault se assenta nesta base factual; mas há este outro Michel Foucault,
o da desconstrução; neste perfil ele vira hit
– aquele de ideal libertário, total ojeriza à cultura ocidental (in Llosa,
2010, p. 19)
[10]
A
história da loucura : na idade clássica
. Trad. José Teixeira Coelho Neto . São
Paulo : Ed. Perspectiva , 2012.
[11] Sobre este tema há um
interessante artigo de Durval Muniz de Albuquerque Júnior ( 2011 ) – As margens
d’O Mediterrâneo : Michel Foucaul, historiador dos espaços – no qual aborda o
decidido apoio de Fernand Braudel aos
escritos de Michel Foucault, no que ele tinha de inovador, correlato a
imensa diferença entre ambos no que tange ao caminho metodológico adotado.
Embora não fossem amigos, havia entre ambos uma nítida admiração mútua no campo
intelectual.
[12]
FOUCAULT, Michel As palavras e as coisas: uma
arqueologia das ciências humanas , 6ª edição ( 1ª ed. em francês em 1966 ),
trad. Selma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1992
[13] Segue abaixo uma reflexão sobre a obra destacada
tendo em conta a reprodução de parte do texto de nossa autoria - Discutindo cientificidade: o caso
da geografia. Geografia, uma ciência ?
encontrado na Revista geo-paisagem (on line), ano 7, vol. 13, 2008.