Revista geo-paisagem (on line) Ano 9, nº 17, 2010 Janeiro/Junho de 2010 ISSN Nº 1677-650 X Revista indexada ao Latindex Revista classificada pelo Dursi Revista classificada pela CAPES |
Território e festa. A geografia da
festa no Brasil. Um olhar para a cidade do Rio de Janeiro
Helio
de Araujo Evangelista[1]
RESUMO
O
artigo destaca a dimensão da festa na
formação da alma brasileira. Muito do que há no Brasil não está escrito, mas é
dito, não raro de forma cantada. Assim, de forma este aspecto lúdico conforma
uma dada geografia. Este é o nosso foco.
PALAVRAS-CHAVES:
Musica,
identidade, geografia
ABSTRACT
The aim of this article is
to search how important parties are for the identity of Brazil. In his history
was very common not writing but singing or talking, it’s a fundamental aspect
to understand the inner of Brazil. And, how it can be related with geography,
it’s our purpose.
KEY-WORDS: Music ; identity ; geography
Apresentação
Em meu trabalho intitulado – Rio de Janeiro e a música –
assim escrevia
“Nasci no Rio de Janeiro, mas passei
minha infância na cidade de Ponta Grossa (PR), e voltei com a família aos doze
anos. Na época (1969) causava-me especial surpresa a variedade de música que
ouvia. Na feira, na padaria, ao passar diante das lojas, sempre havia um rádio
que tocava música” ... (Evangelista, 2009, p. 7) [2]
O Rio de Janeiro é espaço de festa.
O Brasil também.
Os primeiros registros de festa no Brasil já começam no
primeiro documento sobre o mesmo, a saber, Carta de Pero Vaz de Caminha.
“Andamos por aí vendo a
ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas,
não mui altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos.
Então
tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde havíamos desembarcado.
Além
do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se
tomar pela mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias,
almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou
consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar,
tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao
som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas
ligeiras e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito....”
(Caminha, 2002, p. 106)
No entanto, no Brasil não faltaram dores. Muito sofrimento.
Um dos últimos países a promover a abolição dos escravos. Porém, quantas obras
da literatura brasileira tratam deste drama?
Ao percorremos as páginas da novela
Oliver Twist de Charles Dickens, ou Germinal de Emile Zola ou Les misérables de
Victor Hugo, quanto de maestria e envolvimento tratando da miséria. É ... no
Brasil ... a miséria só veio a ocupar maior expressão fundamentalmente com
Euclides da Cunha, sua obra, Os Sertões, esta
inaugura na literatura uma verdade – como este país tem miseráveis!
Talvez fortes, mas miseráveis!
Ora, por que começar desta forma um
texto sobre festa, festa brasileira?
Para desde já defender a tese que o
caráter festeiro de sua população tem uma imediata relação com um povo que vai
se expressar muito mais através da oralidade do que propriamente pela veia
literária.
O Brasil se vê na festa. Ele se
revela na festa. Ele é festa. Querer entender este país sem o poder da festa é
inconcebível. Sua grande data é dada pelo carnaval; a data não vem da
independência (7/9) nem da proclamação da República (15/11) Suas relações são
pautadas pela musicalidade, pelo batuque. As relações são muito mais vivas
pelos encontros do que pelos escritos, pelos parágrafos. Cala mais fundo o
acorde, o desafio, a cantoria. As letras ... estas fiquem com os poetas, os
letrados, com aqueles que vêm de longe. São capazes de falar javanês. Viva Lima
Barreto!
A sociabilidade pautada nas músicas
ajuda muito na dor, no enfrentamento à dor.
A festa é mix, ela tem um lado
indígena. As festas são intrinsecamente associativas.
A festa é fé, são poucas, a rigor,
nenhuma das que se projetam no imaginário popular deixam de ter um aporte na
dimensão do sagrado. A festa no Brasil tem cheiro de além, e ela vai para mais
além!
A festa no Brasil educa. Ela cria
disciplina, ela cria hierarquia. Ela encanta. Ela descansa. Ele promove,
instiga o sentimento de pertencimento. Não sou só, pertenço a um grupo, a uma
família. Sou alguém, sou importante .... sou, sou, sou ... ao cantar, ao
entoar. Mas, curiosamente, ninguém assina a autoria. A música, a música que
todos entoam pertence a todos, talvez, em função de um lugar, ou uma outra
liderança, há nuances, trejeitos, mas não há autor. Nos rincões brasileiros e
respectivas festas não vigora o direito autoral. A festa não é para enriquecer
por fora, é para enriquecer por dentro. A festa não endinheira ninguém, mas
aquece!
·
Origem
Tendo por base um seriado intitulado
– História da música brasileira – promovido pelo Centro de produção editoriais
e culturais (CEPEC) [3],
temos que a música no Brasil é muito pouco documentada, embora seja algo
constitutivo de nossa identidade.
A festa é algo próprio à identidade
brasileira. A festa vem com os índios mas adentra as igrejas. As igrejas foram
absorvidas pelo estilo cantante da população aborígine. A igreja melhor divulga
os dotes vocais e o avanço dos instrumentos até atingir este fenômeno musical
que foi a proliferação de órgãos em cada província, alguns de notória fama até
os dias de hoje, como o de Mariana (MG) órgão do século XVIII que após uma
reforma em 1984 foi reabilitado após cinqüenta anos inativo. E, paulatinamente,
esta minha igreja veio a suscitar escolas, ou seja, ao redor começa a tecer
coletivos dedicados à música que de outra forma não se sustentariam. O teatro,
por exemplo, só tomou corpo na segunda metade do século XIX no Brasil.
O drama deste período colonial é a
inexistência da cultura da impressão. No Brasil Colônia era proibida a
existência de gráfica. [4]
Sobre este aspecto Wilson Martins
(1977, p. 83) observa que o primeiro volume impresso em Lisboa saiu em 1481,
mas eram verificados tipografias em suas colônias. Por exemplo, Goa teve a sua
primeira publicação em 1561, Macau, por sua vez, a tipografia chegou em 1590.
Mas, no Brasil nenhuma tipografia foi instalada, chegando a ser destruída a
construída por Antonio Isidoro da Fonseca em 1747. Em obra recentemente reeditada, Ipanema
(2008) resgata o processo de implantação de tipografia em São Paulo que só
logrou sucesso, depois de idas e vindas em pleno século XIX, após o período
colonial. O período colonial brasileiro apresenta este drama, entre outros,
enquanto colônias espanholas vizinhas chegavam a contar com universidades aqui
nem impresso podia ter. O que chama a atenção neste episódio é o poder de
inércia do processo histórico, é o chamado Poder do atraso de José de Souza
Martins (1994).
Há ainda registro de litografia em
1796,[5]
mas somente no século seguinte, após a vinda da Família Real, que o ramo da
litografia cresceu no país. Seu desenvolvimento esteve muito relacionado à
descoberta que se operou diante do Brasil, os viajantes e cientistas adensaram
relatos sobre o país. A própria burocracia lusitana, aqui em nossas terras,
procura se ater as características desta terra tão estranha! Cresceu a edição
de jornais. Cresce a valorização das letras!
Talentos vão se destacar neste
período, a começar por Manuel de Araujo Porto Alegre, aluno de Debret; em São
Paulo o Farol Paulistano como veículo de divulgação de notícias.
Geração sucessora a de Araujo Porto
Alegre temos Francisco Paula Brito, pessoa que entre seus méritos teve o de
promover a carreira literária de Machado de Assis.[6]
Assim, são poucos os registros musicais
encontrados atualmente relacionados ao período colonial. As notas musicais e
respectivas anotações, os enredos musicais, ou eram manuscritos ou vinham de
fora via exportação. Por este aspecto se torna mais adequado compreender porque
o período foi tão marcado pela música religiosa; não havia qualquer entidade
que viesse a sustentar a atividade musical. A igreja não oferecia apenas um
palco para o espetáculo musical, este também vinha acompanhado por uma estética
visual. A igreja era a televisão daquele tempo!. Por ela os principais
aconteciam, não só notícias, discursos imprecando acontecimentos recentes, mas presença
dos mais ricos que vinham para ver e serem vistos em suas vestimentas.
A música sacra era constitutiva de
todo e qualquer evento relacionado à igreja. Igreja sem música é como se fosse
religião sem oração. Assim, temos de considerar a atmosfera psico-cultural reinante
no qual o belo canto, a voz, os volteios melódicos estavam acima de qualquer
sentido que a musica poderia vir a ter. Numa população de analfabetos, o ensino
vinha pela tradição oral. O enlevo das pessoas estava relacionado ao ouvido e
aos acordes vocais.
A música profana, por sua vez, só
vem a ter uma certa expressão no século XVIII, por exemplo, em 1759, temos a
formação da Academia Brasílica dos
Rinascidos promovida pelo desembargador José Mascarenhas de Mello que
desempenhava suas funções na Bahia.
Na esteira da expansão da música
profana temos o Lundu na segunda metade do século XVIII. Ainda, as modinhas
eram declamadas em casas particulares ou nos saraus.
Com a vinda da Família Real ao
Brasil em 1808 temos a inserção da Corte como elemento a mais para promover a
música. A Capela Real, por exemplo, suscitava em seu redor todo um coletivo
dedicado à música. Este período mágico da história brasileira com direito à
presença de uma Habbsburgo em paragens tropicais suscita uma nova época de
nossas músicas e festas. Isto porque o Brasil suscita interesses de diferentes
partes. Crescem a presença de pesquisadores e artistas. Rugendas, Debret,
Thomas Ender, Von Martius, Hermann Burmeister e J. J. von Tschudi, D.P. Kidder
e J.C. Fletcher , Príncipe Adalberto Hohenzollern, Ida Pfeiffer, John Mawe entre outros vão trazer o Brasil
para a população européia. É nesta época que a musicalidade brasileira,
particularmente a carioca fica mais européia, afastando-se de uma vertente
indígena e negra.
Para concluir a utilização do
material proporcionado pelo seriado na TV, temos que a música foi por excelência a melhor
forma de comunicação entre os europeus e os autóctones. A escrita inexistia
nesta última, assim, o bailado, a sonoridade constituía um veículo
indispensável na conformação de uma relação amistosa.
Na obra de Wilson Martins – História
da inteligência brasileira – consta que em seu primeiro volume que “... o que
mais desesperava os bons padres do século XVI era a impossibilidade de
realmente comparar ou equiparar a língua dos indígenas (ou seja, a sua alma)
com a dos gregos: Não tem escrita, nem caracteres, nem sabem contar, nem têm
dinheiro; commutatione rerum compram
uns aos outros ; sua língua é delicada, copiosa e elegante, tem muitas
composições e sincopas mais que os gregos, os nomes são todos indeclináveis , e
os verbos têm suas conjugações e tempos. Na pronunciação são sutis, falam baixo
que parece que não se entendem e tudo
ouvem e penetram; em sua pronunciação não põem F, L, Z, S e RR, nem põe muta
com líquida, como Bra, Craze.” (Martins, 1977, p. 56-57). [7]
A música se expressa com gestos. A
música continha oração. Boa parte dos registros musicais brasileiros do período
colonial são de cantos litúrgicos. A igreja era o grande palco da
socialibilidade. Nela se expressavam os melhores talentos, os letristas, os
vocais, os instrumentistas. A igreja já era concebida para abrigar, propagar
uma sonoridade. Desde cedo, no Brasil, a festa vem impregnada de religiosidade.
O sentido do cantar vem impregnado por um sentido de além morte. A música não é
apenas um folguedo, é também uma tradução de uma inquietação que torna a pessoa
apta a enfrentar o morrer! Há uma dimensão metafísica no processo musical, não
se trata apenas de entretenimento, há um aspecto relacionado a sentido de
existência.
Mas a música de igreja é uma música
contida, calculada, estudada, há partitura! Não há gesto, há dicção. Mas não
podemos nos enganar, esta matriz tão jesuiticamente construída perfaz o
diapasão em torno do qual o que segue em toda vida social na vida colonial. A
música popular está impregnada por este parâmetro, os músicos costumam ser
mulatos ou negros! Estes em sua pobreza veiculam o que aprenderam nas igrejas e
para as igrejas, mas este aprendizado se volta para as cantorias realizadas nas
roças. [8]
Em outra passagem, o mesmo autor
observa que a música era algo constitutivo da nação indígena aqui encontrada e
que foi percebido argutamente por José de Anchieta no século XVI. Este
reconhece o valor da música como instrumento de catequese. A adoção da música
pelo jesuíta predispôs os índios em seu favor pois a músicas dos índios eram usadas
em autos sacros, procissões ou festas
familiares. Segundo outro autor utilizado por Wilson Martins, José de Anchieta
recorria também aos instrumentos indígenas, particularmente o cateretê indígena
entre as suas técnicas missionárias dada a própria riqueza instrumental dos
índios brasileiros. À página 73 de sua obra, tendo por base G. F. Pereira
enumera-se:
O
“memby-chué”, que os paraenses e peruanos chamam de “guerna”, tinha a forma de
umaflauta dupla; a “cangoerá”, espécie de flauta feita com ossos dos mais
célebres guerreiros mortos; o “uatapu”, buzina cujo som tinha a virtude de
atrair os peixes; a “inúbia”, o “memby-tarará”, o “pemy” e o “mimi”, buzinas de
guerras; o “toré” ou “boré” trombeta feita de bambu ou taquara, muito usada no
Ceará; o tori dos Parintintim, indígenas que vivem entre os rios Madeira e
Tapajós, no Pará, era também uma buzina composta de uma cabeça com um orifício
na parte inferior e na superior um tubo de cana convenientemente ajustado, com
embocadura de flajolé; o “minoê” , dos Guaiajarás do Maranhão, era ainda uma
espécie de buzina feita de duas peças coladas com resina da mesma árvore. Os
Munducuru, a tribo mais guerreira do vale amazônico, usavam também nas festas
de glorificação dos seus heróis, uma trombeta reta de madeira, cujo tubo cônico
terminava numa espécie de sino muito semelhante à clarineta, e que denominavam
“oufuá”. Entre os instrumentos de percussão, notam-se os seguintes: “cotecá”,
“curugu”, de dimensões enormes, cujo som era horrível e lúgubr; o “maracá” ou “caracaxá”,
o “curuqui” e o “wapy” ou “watapy”, tambores feitos com troncos de árvores,
leves e ocos.
A festa no período colonial
brasileiro tem pompas e mais pompas; porém, é partir do século XVIII que se
verifica uma organicidade no processo. Provavelmente a situação tenha relação
com as descobertas das minas pois ensejou toda uma leva de pessoas e correlatos
talentos em direção ao Brasil. [9]
A vida e obra de Gregório de Matos
sinalizam um particular momento da cena cultural brasileira. Suas andanças pelo
recôncavo baiano expressa em Salvador estar concentrada uma atividade cultural
nada desprezível. Ao contrário de Recife e Rio de Janeiro, Salvador apresentava
um entorno muito mais cultivado, ou seja,
a cidade não era só porto! Havia uma economia doméstica! Havia a pesca e
coleta de mariscos, plantio de tabaco e produção de aguardente, criação de
gado, plantio de milho e legumes! Além de produção de telhas, tijolos, tabuados
e madeiras para construção de casas e navios.
Atividades diversas que envolviam
operários diversos, a saber, engenheiros, marceneiros, pintores, funileiros,
porteiros, guardas, boticários, calafates, ferreiros, apontadores, mestres de
barcas, perfaziam o que já podíamos tratar como uma estrutura urbana que abria
um dialogo entre o mundo rural e urbano.
É também desta época e lugar que se
vem as primeiras notícias sobre o lundu,
para o qual concorre a notória influência negra, mas com menos importância a
participação de europeus no desenvolvimento do estilo.
Há ainda o fado, cuja citação abaixo
trás uma preciosa caracterização do estilo no romance - Memórias de um Sargento
de Milícias de Manual Antonio de Almeida, no capítulo – Primeira noite fora de
casa.
“Daí a pouco começou o
fado
Todos sabem o que é o
fado, essa dança tão voluptuosa, tão variada, que parece filha do mais apurado
estudo da arte. Uma simples viola serve melhor do que instrumento algum para o
efeito.
O fado tem diversas
formas, cada qual mais original. Ora, uma só pessoa, homem ou mulher, dança no
meio da casa por algum tempo, fazendo passos os mais dificultosos, tomando as
mais airosas posições, acompanhando tudo isso com estalos que dá com os dedos,
e vai depois pouco e pouco aproximando-se de qualquer que lhe agrada; faz-lhe
diante algumas negaças e viravoltas, e finalmente bate palmas, o que quer dizer
que a escolheu para substituir o seu lugar.
Assim corre a roda toda
até que todos tenham dançado.
Outras vez um homem e
uma mulher dançam juntos: ora acompanham-se a passos lentos, ora apressados,
depois repelem-se, depois juntam-se: o homem às vezes busca a mulher com passos
ligeiros, enquanto ela, fazendo um pequeno movimento com o corpo e com os braços, recua vagarosamente, outras
vezes é ela quem procura o homem, que recua por seu turno, até que enfim acompanham-se
de novo.
Há também a roda em que
dançam muitas pessoas, interrompendo certos compassos com palmas e com um
sapateado às vezes estrondoso e prolongado, às vezes mais brando e mais breve,
porém sempre igual e a um só tempo. (p. 59)
Quando o fado começa
custa a acabar; termina sempre pela madrugada, quando não leva de enfiada dias
e noites seguidas e inteiras. (p. 60)
·
Sobre o Rio de Janeiro
Entrevista
com Edino Krieger sobre música no Rio de Janeiro
Entrevista com Edino Krieger , então presidente da Fundação Museu Imagem e do Som, Sala Cecília Meireles e a Academia Brasileira de Música . Local Fundação Museu Imagem e do Som, data: 2 de junho de 2004.
O Sr. Edino Krieger é natural de Santa Catarina, Vale do Itajaí, chegou ao Rio de Janeiro com cerca de 15 anos no ano de 1943; numa época que o Rio de Janeiro tinha um milhão de habitantes. A sua formação musical teve influência do seu pai que chegou a ter uma jazz band. Tem do Rio de Janeiro as gratas lembranças do carnaval de rua; da Praça Mauá até a Praça Paris havia uma massa de fuliões; assim como da Praia do Flamengo até o Largo do Machado havia uma massa só. Porém, com a televisão, este carnaval desapareceu. A maior parte das pessoas assistem mas não brincam carnaval. Antigamente, além dos desfiles das escolas nós tínhamos os ranchos, os desfiles das sociedades, os democráticos, além de grupos de frevos. Antigamente, o povo era platéia e ator do carnaval; mas hoje virou um desfile monumental.[10] No passado, o carnaval era sobretudo música, cada ano havia uma marchinha nova produzida por Lamartine, Almirante; no Café Nice havia um point onde as pessoas se encontravam, bebiam cerveja, o que não deixava de ser um contra-ponto à nobreza do Café Colombo; nestes encontros o que valia era a melodia, a própria fantasia era um ornamento, no entanto, hoje, ocupa um lugar central. O próprio samba-enredo encontra-se desfigurado, o passista para mostrar sua evolução depende de uma certa cadência do samba, porém, hoje, há um aceleramento do ritmo, e isto prejudica a evolução dos passistas. Se no passado, as novidades musicais dependiam dos encontros, de associações as vezes ocasionais, que acabavam gerando criações; hoje é o oposto, a indústria já pré-indica tendências, ela se antecipa, ela cria encomendas; gerando uma certa maneira quase que padronizada no samba-enredo, há uma mudança na letra mas não há diferença na forma. De qualquer modo, a música gratuita vinda das rodas não desapareceu, por exemplo, na Cobal do bairro de Botafogo, aos domingos à tarde, pessoas se reúnem para música instrumental, as vezes Altamiro Carrilho passa por lá.
Helio – A pergunta básica é a seguinte: 1º ) o Sr. concordaria que haveria uma menor presença do Rio de Janeiro no cenário musical; 2º ) havendo isto, como explicaria este processo; afinal o Rio de Janeiro já foi local de vários compositores e hoje o mesmo não ocorre.
Edino
– Esta é um fenômeno que não se restringe ao Rio de Janeiro. Na verdade, a
concentração da vida social, cultural, econômica nas grandes megalópoles não
está mais acontecendo, pelo menos neste momento. Você vê por exemplo com
relação ao futebol, há uns trinta anos atrás só havia futebol no Rio e São
Paulo. Hoje, a coisa está disseminada. Na música acontece mais ou menos a mesma
coisa. Por exemplo, na minha área específica, que é a da música clássica,
quando comecei organizar os festivais, 1969/70, só havia compositores de Rio e
São Paulo, e menos da Bahia. Havia um eixo São Paulo/Rio/Bahia. Hoje não, você
tem compositores surgindo de todos os cantos do país em função do
desenvolvimento do ensino da música nas universidades. Então, você veja, temos
um desenvolvimento dos meios de comunicação, rádio, televisão, quer dizer o
acesso à informação cultural de todos os níveis está facilitado então aqueles
talentos que não se conheciam naquela época, eles estão tendo agora sua chance
de aparecer. Então é um fenômeno natural, é uma conseqüência deste
desenvolvimento que hoje está, digamos assim, mais democratizado. Está mais
difundido no país inteiro. Hoje, não há mais diferença, no ponto de vista
cultural, no ponto de vista de acesso aos bens culturais, enfim à tecnologia,
tudo isso, não há grande diferença entre uma metrópole como o Rio de Janeiro e
uma cidade menor, por exemplo, da Paraíba. Existem talentos por aí afora que
quando a gente conhece fica surpreso. Outro dia estive na Paraíba, numa festa
de casamento, com uma recepção no Yacht Club, e havia um músico tocando e um
cantor e ao ouvir aqueles dois não colocaria neles qualquer defeito. A
qualidade do trabalho que eles faziam, não falo da música ( o que aliás não
podemos falar da qualidade da música que ouvimos no Rio de Janeiro hoje ), mas
digamos assim da qualidade técnica do trabalho deles é exatamente o que você
poderia ouvir de melhor no Rio de Janeiro e São Paulo em qualquer local de
show. Até cheguei a comentar com meu neto, que voz fantástica do rapaz, que
timbre de voz bonito que tem esse cantor. Uma voz privilegiada, com afinação
absoluta, o que às vezes não encontramos entre aqueles que chegam a vender
muitos discos. Uma cantora do local, amadora, mãe de família, ela foi convidada
para dar uma canja lá; olha, era uma voz ... compreendeu ... para cantor nenhuma no Brasil botar
defeito. Não fica a dever nada diante das grandes personalidade musicais de
nosso tempo. Lá no interior do Rio Grande do Sul podemos ver a mesma coisa, no
interior de Goiás também, então esta facilidade de intercomunicação acabou
descobrindo valores que vêm lá do interior e de repente uma gravadora ouve.
Acho isto algo muito positivo, por outro lado, vejo também que a safra de
grandes valores no Rio de Janeiro, mesmo em São Paulo, diminuiu muito. Acho que
hoje não tem mais, digamos assim, nem grandes compositores como tivemos nos
anos recentes; não vejo assim, nenhum novo Chico Buarque, nenhum novo Tom
Jobim, nenhum novo Caetano Veloso. O Caetano se lançou aqui nos festivais de
canção popular, até então era um ilustre desconhecido. Também não sei se a
Bahia tem um novo Caetano Veloso ou Novíssimos Baianos, enfim, acho que isto é um
fenômeno normal. Acho muito difícil, digamos assim, que um núcleo cultural
produzir sempre produtos de alta qualidade, é uma coisa que depende muito do
talento individual.
Helio
– Poderíamos considerar que o Rio de Janeiro num dado momento ter sido um núcleo
cultural.
Edino
– Ah, certamente ! Coisa que continua sendo .
Helio
– Dentro do campo da cultura, não se limitando à música que outro gancho forte
que tem o Rio de Janeiro ... talvez mídia, televisão ...
Edino
– Não sei, a própria mídia televisiva está num processo meio ... né ! Está num
processo de não necessariamente valorizar coisas que de fato tem valor. Eu acho
que o grande responsável para isto, este declínio ... decorreu do interesse
comercial. O aspecto de fazer da música um produto de mercado, o famoso
mercado, que é responsável por muitas coisas boas, mas também é responsável
certamente ... às vezes há uma banalização da cultura porque o que vende mais é
que é o melhor.
Helio
– Hoje temos compositores famosos sem gravadora.
Edino
– Exatamente!
Helio
– Esse processo de mercantilização começa em 70/80 em diante.
Edino
– Eu acho que é de 80 para cá. É uma coisa um pouco curiosa porque com o avanço
do desenvolvimento da tecnologia você verifica que há um processo inverso no
sentido da qualidade do produto que é colocado ...
Helio
– A questão da voz, da melodia, ficam reféns do merchandising .
Edino
– Exatamente, merchandising, do interesse imediato do mercado. Eu acho que é
por aí. Não sou especialista nisto, em análise de mercado cultural. Não é minha
praia. Mas é uma visão de alguém que de alguma forma participa mesmo
indiretamente disto. Repare que na minha área específica, que é o da música
clássica, este declínio é vertiginoso. A nossa música, no momento, é quase que
uma espécie em extinção se você considerar que hoje, no Rio de Janeiro,
praticamente não há uma mídia impressa especializada, um jornal que dê espaço,
o que há trinta/quarenta anos se dava; hoje a divulgação é muito mais eventual.
Helio
– Por exemplo, o que ocorre hoje na Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo
... é muito mais uma divulgação do que está feito do que propriamente gerar
originalmente uma linha musical. Teve um tempo que havia um Radamés Gnatalli,
Mignoni, e tantos outros como Guerra Peixe como tantos outros compositores.
Edino
– Veja bem, hoje há muito mais gente fazendo, por exemplo na Academia
Brasileira de Música nós estamos realizando um concurso para jovens
compositores que foi divulgado somente via internet. Eu pensei, não teve grande
divulgação na mídia, na televisão, na rádio, nos jornais, mas como a juventude
está costumada a ficar grudada na internet podia haver o fator surpresa, como
de fato ocorreu. Hoje, se não me engano, tem 37 inscrições de obras sinfônicas.
Ora, 37 é um número respeitável. É um concurso que visa estimular jovens para
escrever para orquestras. Como no Brasil não é muito fácil escrever para
orquestra e você ainda ouvir a composição. Há poucas orquestras e as poucas que
existem não costumam dar espaço para obras de jovens. Eu considero a existência
de 37 partituras um verdadeiro sucesso.
Isto mostra que há um potencial de criação de música entre os jovens
muito maior do que existia antigamente. Existem mais escolas; não é como há trinta
anos atrás quando estas estavam concentradas no Rio de Janeiro, São Paulo e
Bahia. Há escolas em Goiás, interior de São Paulo, também no Rio Grande do Sul,
no Nordeste ...
Conclusão
Este é último trabalho que verso
sobre o que considero o Brasil profundo no intuito de verificar a geografia
brasileira. Explico-me. Nestes dois últimos anos tratei de temas marcantes na
história brasileira, a saber, índio, igreja, forte, e festa na intenção de
captar sua geograficidade, mais particularmente, entender a origem da geografia
brasileira. Foi um esforço em vão porém frutífero; em vão porque a geografia
brasileira não se inicia em seu período colonial![11]
Frutífero porque as quatro janelas proporcionaram um passeio na história
brasileira que muito nos foi útil para melhor compreender de que forma este
país é. O Brasil é multiforme, diverso, plural, mix, marcado pela miscigenação!
Agora, o que isto inflecte na
geografia? Bom, há uma geografia enquanto factual idade, mas não é desta que me
refiro; refiro-me a geografia brasileira enquanto campo temático! Desta, sua
história, a rigor, se inicia no tempo do Império. Mas que geografia é esta?
Seria uma geografia miscigenada? Não, no
lo creo! Penso que se fez uma geografia voltada para o poder. Uma geografia
da unidade nacional, uma geografia do orgulho patriótico. Mas não uma geografia
expressiva do rosto brasileiro! Quando muito uma geografia voltada para os
recursos, uma geografia do conhecimento estratégico, mas não uma que nos ajude
a compreender este país, e quem somos!
Tendo em conta a contribuição da
história, na pessoa de Capistrano de Abreu entre outros, da sociologia, na
pessoa de Gilberto Freyre entre outros, da antropologia, na pessoa de Darcy
Ribeiro entre outros, a geografia está devendo um produto que encerre uma
interpretação do tipo: nós brasileiros, quem somos?
Mas, o que cabe aqui considerar
é: como a geografia se realiza neste
período colonial?
A geografia se firma neste período
como algo que não tinha letra! É a geografia dos guaianases dos índios, é a
geografia da memória, é a geografia dispersa num ou noutro troço de papel.
Enfim, não há geografia, geografia enquanto um tema distinto. Isto só veio a
ocorrer no século XIX com instituições como o Colégio Pedro II, o Instituto
Histórico Geográfico Brasileiro – IHGB etc.
Há de convir, também, que havia a
geografia do metro, geografia da geometria. A geografia da medição. Refiro-me a
todo um esforço verificado no século XVIII para estabelecer limites entre a
América portuguesa e a América espanhola.
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[2] A primeira edição ocorreu em 2005, mas foi reimpresso em 2009 pela Sociedade Brasileira de Geografia.
[3] O que se segue, tem por apoio o seriado tem como criador e diretor artístico o maestro Ricardo Kauji, como historiador Ricardo Maranhão e como musicólogo Paulo Cestaque. Produzido em 1991 teve então patrocínio da Telebrás S.A. Foi veiculado pela TV Brasil em diferentes datas de acordo com diferentes capítulos, o primeiro começou em 11/1/2008.
[4] Temos ...”Embora não existam realmente documentos musicais escritos para o comprovar (os sons dos negros e dos brancos e mestiços das camadas baixas foi sempre referido por cronistas e viajantes sem preocupação da notação musical), não quer dizer, porém, que (p. 103) não se tenha formado a partir do século XVII o tal substrato necessário ao aparecimento de um primeiro autor de salão bem-sucedido na criação de músicas baseadas em material coletivos.” Em Tinhorão (1998, p. 102-103) A obra de Melo Morais Filho – Festas e tradições populares do Brasil – apresenta vários aspectos do fenômeno festivo no Brasil.
[5] Conviria averiguar se esta tipografia tem relação com a Academia Científica do Rio de Janeiro criada ao tempo do então vice-rei Marques do Lavradio em 1772. Quem nos lembra a existência desta entidade, uma entidade voltada para a ciência, é o escritor Joaquim Manuel de Macedo em sua obra – Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro de 1966, p. 74.
Esta nota, de certo modo, vai contra a noção defendida por Wilson Martins de que no Brasil ocorria um processo intencional de obscurantismo. Parece-me interessante diante da história termos atenção para com as micro-histórias, tal como defendido por Carlo Ginzburg (1989), ou seja, nuances que aparentemente tem pouca monta mas está a indicar processos que contradizem versões interpretativas dominantes.
[6] É em torno de Paula Brito que será constituída a Sociedade Petalógica, composta por Manuel de Araujo Porto-Alegre, Joaquim Manuel de Macedo e Visconde do Rio Branco. Esta uma sociedade de encontros cujos temas eram diversos mas incrementada pelo toque do humor, como é próprio do espírito carioca, a começar pelo próprio título da entidade (peta significa mentira)!
[7] Esta reflexão está baseada na Informação da Província do Brasil documento interno promovida pela Cia de Jesus e que o estudo de Wilson Martins aqui utiliza.
[8] Naturalmente que não podemos desprezar outras matrizes, além da jesuítica, com por exemplo a fornecida pela invasão holandesa que afetou profundamente o litoral nordestino no que diz respeito à arquitetura, ciência, letras etc.
[10] Numa conversa informal com minha mãe, típicas conversas que se realizam na beira de uma mesa onde fica o café a esfriar, ela trouxe lembranças de seu carnaval. Quem diria, minha mãe no carnaval! Mas ela observava, enquanto moradora do Méier, que seu carnaval era eminentemente de rua e envolvia toda a família, inclusive minha avô. A brincadeira costumava utilizar os bondes, no seu caso, utilizava o bonde que ia para Piedade e voltava para o Méier. O chamado bloco de sujo era um contra-ponto às fantasias de luxo que costumavam ser apresentadas no Teatro Municipal, para grande destaque do figurinista Clóvis Bornay e a modelo Wilza Carlas. Na época, o carnaval ia de domingo até terça-feira, e o pessoal preso durante o carnaval era solto só na quarta-feira de cinza, na saída, com várias pessoas esperando, as pessoas saiam ainda fantasiadas e passavam a dançar carnaval, com direito à polícia em seu encalço; o bloco Chave de Ouro, da localidade Boca do Mato ( em Engenho de Dentro ) surgiu desta forma.
[11] Não se fez necessário continuar
a linha de trabalho adotada usando para
isto outros temas que marcam a história
brasileira porque significaria perder um valioso tempo dada a nossa constatação
que a geografia brasileira é coisa do século XIX. Talvez, há quem observe: ora
eu já sabia! E respondo, eu não! Precisava mergulhar nestes séculos iniciais da
história brasileira para aferir a origem da geografia brasileira.