Revista geo-paisagem ( on
line ) Ano 2, nº 4, 2003 Julho/Dezembro de 2003 ISSN Nº 1677-650 X |
Nelson da Nobrega Fernandes
O presente trabalho
analisa a música no Rio de Janeiro, destacadamente a origem e evolução do
samba.
Palavras-chaves: Rio de Janeiro, música, samba
Abstract
Our goal is to study the
music in the Rio de Janeiro; specially the samba.
Keywords: Rio de
Janeiro, music, samba
I ) Apresentação
O objetivo deste artigo é descrever o
desenvolvimento das festividades carnavalescas no Rio de Janeiro entre a
segunda metade do século XIX e a década
de 1920. Ao longo deste período surgiram, evoluíram, persistiram e também se
extinguiram várias formas de celebração do Carnaval. Essa diversidade festiva
resultou de expressões de vários segmentos, grupos e classes sociais da
cidade, atingindo seu clímax nos primeiros anos do século XX,
quando o Carnaval foi constituído pelo entrudo, grandes sociedades, ranchos,
blocos, cordões, Zé Pereira, grupos de mascarados e do corso, que se exibiam
nas ruas; ou ainda dos bailes em teatros e clubes.
A descrição desse processo está baseada
principalmente na hipótese desenvolvida por Villaroya (1992) sobre a
permanência da festa na modernidade, ou seja, pelo reconhecimento de que apesar
da racionalidade burguesa e iluminista ser essencialmente anti-festiva e ter
obtido muitas vitórias contra as festas populares – o declínio do carnaval na
Europa é um bom exemplo -, há o fato evidente de que a própria modernidade
criou suas celebrações como também atualizou e reinventou festejos do mundo
antigo. Para Villaroya, não há dúvida de que a racionalidade moderna é
anti-festiva, porém, o homem moderno necessita a festa tanto quanto o seu
ancestral paleolítico. Como elemento fundante e permanente da civilização
humana a festa é, como afirma Bakhtin (1971), “indestrutível”. Villarroya
critica estudiosos como Callois.e Bataille responsáveis por uma tradição
que ele qualificou como uma “teoria destrutiva da festa”. E de fato, entre nós
existem aqueles que confessam a sua perplexidade diante da vitalidade do
carnaval no Brasil em paralelo com a modernização da sociedade. Roberto da
Matta é um bom exemplo: “Em suma, ainda me intriga o fato de o Brasil ser uma sociedade que pode
ler a si mesma e ritualizar-se por meio de uma festa anti-iluminista e
anti-burguesa, tão centrada no corpo, sensual e relativizadora como o carnaval”
(cf.: Alves & Costa: 2000).
No Rio de Janeiro assiste-se com a modernizaçao o crescimento e a
diversificação das festividades momescas. E o domínio sobre as grandes festas
populares como o carnaval foi tão premente e importante para o controle e
desenvolvimento da cidade quanto as ferrovias, planos urbanísticos, posturas
municipais, medidas de higiene etc., reafirmando o princípio de que as
transformações urbanas não se resumem a sua materialidade, mas também envolve
as dimensões imateriais e do imaginário. As grandes festas populares são uma das caras mais inequívocas
que uma cidade pode ter e nenhum projeto de domínio sobre a mesma pode
ignorá-las. Assim, por exemplo, em pleno Império - mistificado por seus
inimigos republicanos como tolerante com os costumes populares (Chaloub, 1994:
15, 16) -, foram tomadas iniciativas de morte contra o entrudo, ao que tudo
indica, a festa mais arraigada e abrangente na cultura popular do Brasil da
época.
O ano de 1855 é um marco na história do carnaval carioca pelo aparecimento da primeira iniciativa concreta de sua modernização, com o desfile inaugural das “Grandes Sumidades Carnavalescas”, precursora dos grupos de desfiles carnavalescos chamados grandes sociedades. Estas significam a afirmação de posições ilustradas e reformadoras que se opunham às formas antigas de celebração do carnaval. Em 1840, O Jornal se autoproclamava “paladino do carnaval chic”, chamava o entrudo de “jogo selvagem” e abria “contra ele cerrado ataque” (ENEIDA, 1958: 22). O entrudo é antigo jogo carnavalesco de origem ibérica que os portugueses trouxeram para o Brasil no século XVI, que aliás seguiu sendo praticado em Portugal até o final do século XIX. A brincadeira consistia em lançar nas pessoas água, líquidos diversos, farinha e outras substâncias. No Rio existiu até a primeira década do século XX, mas em outras partes do Brasil sobrevive até os dias de hoje. Nós mesmos já participamos desta brincadeira no Recife, onde é conhecida por “mela-mela”.
As grandes sociedades foram projetadas para ocupar e pautar as celebrações do carnaval carioca, até então dominado pelo entrudo, pelo recém inventado Zé Pereira, por mascaradas e cucumbis. Formadas por grupos da elite que viviam na capital do país, as grandes sociedades buscaram e deram, até certo ponto, uma nova aparência e conteúdo para o carnaval do Rio de Janeiro. Segundo Pereira (1994: 72), elas “(...) tinham por base, explicitamente, a tentativa de trazer aos dias de folia da corte, certas tradições carnavalescas européias, mais especificamente italianas e francesas”. O modelo que buscavam implantar foi denominado veneziano. Um de seus clubes pioneiros chamava-se União Veneziana e José de Alencar, após assistir a um desfile das Grandes Sumidades Carnavalescas, testemunhou que não seria diferente passar uma tarde de carnaval na Itália. Exibindo muito luxo e privilegiando epopéias clássicas, as grandes sociedades investiam em distinção que as contrastassem com a pobreza, o arcaísmo e a grosseria característicos do carnaval popular, principalmente do entrudo e do Zé Pereira.
II) Principais manifestações carnavalescas no século XIX: o entrudo, as
grandes sociedades e o Zé Pereira
II.1) O entrudo
Um dos aspectos mais
interessante do livro “História da Carnaval Carioca” (1958) foi o modo
cuidadoso como Eneida procurou situar a evolução desta festa, indicando suas
distintas e polêmicas origens através das grandes festas populares da
Antigüidade e da Idade Média. Em razão disto, ela observa muito claramente não
ser possível se chegar a uma essência do carnaval, de forma contrária ao que
lhe atribuiu Pereira (op. cit.).
O carnaval teve como berço não as festas
da Antigüidade, mas as da Idade Média, afirmam certos autores, mas que importam
essas origens se o carnaval foi sempre
a festa de todas as alegrias, risos, brincadeira, danças? As variadas origens atribuídas
ao carnaval levam-nos apenas à certeza de que, festa pagã ou religiosa, sempre
existiu, na história da humanidade, um determinado momento escolhido pelos
homens para expandir maior alegria, para rir, para pular e cantar mais
livremente (ENEIDA, op. cit.: 8).
É curioso, pois alguns
anos antes de Bakhtin e dentro dos limites do campo da história dos anos 50,
Eneida sugeriu muito claramente que a festa não deve ser vista como uma
essência, mas como uma necessidade permanente do homem fazer a suspensão ou
moratória do cotidiano.
Na tradição cristã o carnaval é um dos máximos momentos em que a sociedade vive tal situação e, como bons católicos do século XVI, os portugueses não poderiam viver sem ele no Brasil. Na realidade, o que eles trouxeram para celebrar os dias festivos anteriores ao resguardo da quaresma foi um jogo chamado entrudo. Rigorosamente em Portugal não havia carnaval, mas o entrudo, embora tal jogo não estivesse fora das festas carnavalescas medievais, fazendo parte de um ampla tradição européia, como recentemente observaram Burke (1996) e Petzoldt (1998). Para descrever o entrudo em Portugal Eneida (op. cit.: 12) recolheu trechos de um artigo do português Júlio Dantas, publicado na Gazeta de Notícias de 21 de fevereiro de 1909.
Nós portugueses, nunca compreendemos que
o entrudo pudesse ser uma festa d’arte como na Itália da Renascença, ou uma
festa do espírito como na França de Luís XIV; o nosso entrudo, o santo entrudo
lisboeta, foi sempre fundamentalmente e caracterizadamente porco. O século XVII
então excedeu a todos outros. Foi o século típico do entrudo nacional.
Segue Dantas descrevendo
o cenário de festa medieval, na qual os mais baixos e desclassificado extratos
sociais comandavam as ruas, praças e vielas. Ali estavam reunidos os devassos,
os marginais, marinheiros e mesmo “fidalguinhos peraltas”, se empastando de
água, ovos, lama e outras imundícies, correndo pelos becos debaixo de
saraivadas de todos os objetos possíveis atirados dos balcões e janelas,
trocando impropérios, chingamentos e troças. Nas camadas superiores havia o
hábito de se promover banquetes e formidáveis comilanças, “até dos conventos
choviam bolos”. Só não havia máscaras que por razões de segurança foram
severamente proibidas em 1689. Visivelmente contrariado, Dantas observa que no
século XVIII, quando o carnaval se transformou em obra de arte em Veneza e
Florença, e em “(...) que Versailles se iluminava para receber Pierrô (...), o
sant’entrudo português surgia apenas boçal, imundo, desordeiro e criminoso”. No
Porto e em Lisboa o entrudo resistiu ao carnaval veneziano até o final do
século XIX, quando novos folguedos e clubes lhe tomaram o lugar, organizando
cortejos, desfiles, carros alegóricos e cavalgadas. No princípio do século XX o
carnaval “quase se limita à exibição de crianças mascaradas e aos folguedos nos
teatros e cinemas”.
No Brasil, o entrudo
também manteve até meados do século XIX indiscutível posto de instituição
nacional. Com algumas variantes foi praticado por todo o território e classes
sociais. Entretanto, paradoxalmente, desde o século XVII até o século XX foi
permanentemente um fora-da-lei. Vieira Fazenda (1921) anotou que nos anos de
1612, 1686, 1691, 1784 e 1818, o entrudo foi alvo de proibições através de
alvarás e portarias. Proibições que foram reeditadas no Império, acusando a
permanência e vitalidade daquela festa ao longo do século XIX, chegando mesmo a
obrigar ao todo poderoso prefeito Pereira Passos a clamar, em 1903, aos
diretores das escolas de ensino médio e superior da capital que usassem de
todos os argumentos necessários ao convencimento de sua culta juventude, no
sentido de que se abstivessem de participar “de diversões públicas prejudiciais
e bárbaras como é o jogo do entrudo, que, além de incompatível com os nossos
costumes de povo civilizado, é expressamente proibido pelas leis municipais”
(ENEIDA, op. cit.: 26).
Curioso país o Brasil,
país da festa e do carnaval, mas também país que proibiu e declarou fora da
lei, por todo o sempre e para sempre, a sua mais longeva festa. Uma festa da
qual participavam todas as sua classes sociais. Em 1818, Debret acusava que o
entrudo nada tinha a ver com os carnavais espirituosos e refinados da França e
da Itália e que em suas vésperas a vida das famílias brasileiras - “do pequeno
capitalista, da viúva pobre, da negra livre”-, era polarizada pela fabricação
de artefatos para a brincadeira das molhadelas. “D. Pedro I era doido pelo
entrudo” e D. Pedro II também brincou “o jogo das molhadelas” com suas irmãs na
Quinta da Boa Vista e em Petrópolis. Como salienta Pereira (op. cit.: 38), a
enorme popularidade do entrudo fazia dele uma festa que podia ser bem
diferente, indo desde delicadas brincadeiras em nossos salões aristocráticos às
batalhas mais renhidas, sujas e violentas que geralmente envolvia ex-escravos,
escravos e a variada pobreza da cidade. Porém, como aponta Eneida (op. cit.:
26), Debret “também viu grupos de negros mascarados e fantasiados de velhos
europeus, imitando-lhes muito jeitosamente os gestos de cumprimento à direita e
à esquerda as pessoas instaladas nos balcões”, mostrando já naquela época um
carnaval multifacetado.
Conforme já observamos,
há consenso, tanto por seus contemporâneos quanto por seus historiadores, que o
carnaval carioca moderno nasce a partir da luta contra o entrudo no século XIX.
Encarado como de fato era, uma herança medieval, ao entrudo foi prescrito o
simples desaparecimento, ou melhor, substituição. E não há aqui, justiça se
faça, nenhuma incompreensão ou idéia fora do lugar das mentes locais que se
opunham ao “grosseiro e porco entrudo”. A Ilustração se incompatibilizou de
modo muito coerente com a cultura e as festas populares que herdaram do
Renascimento. Em Portugal, os ilustrados tentaram no século XVIII substituir o
entrudo pelo carnaval veneziano, e na Espanha foram proibidas as corridas de
touros.
Um dos mais fortes,
pioneiros e permanentes opositores do entrudo foram os médicos e higienistas.
Segundo Soihet (op. cit.: 67), já em 1831 a Sociedade de Medicina do Rio de
Janeiro convocou seus médicos da capital no sentido de contribuírem na
confecção de mapa que correlacionasse enfermidades e mortes com a prática de
entrudo. Mais de 50 anos depois, em 1886, a Inspetoria de Higiene divulgava
circular alertando que as molhadelas comprovadamente potencializavam a febre
amarela (PEREIRA, op. cit.: 40).
Nestes últimos tempos os adeptos do carnaval veneziano realizaram nova ofensiva contra o entrudo. Executaram uma verdadeira operação de “reinvenção do carnaval” constituída de duas partes. Na primeira parte, o entrudo deveria ser isolado das festividades carnavalescas, das mascaradas, dos bailes e desfiles que antes formavam juntos o carnaval da cidade. Na segunda parte, o entrudo deveria ser substituído, desta vez definitivamente, pelos desfiles das grandes sociedades.
A palavra entrudo
que antes designava uma série de brincadeiras carnavalescas - como mascaradas
alusões e xingamentos -, passa a ser entendida simplesmente como sendo a guerra
de limões de cheiro e bisnagas, perdendo seu caráter geral. Dentro desse
processo, o jogo das molhadelas ganha uma grande independência em relação às
demais brincadeiras carnavalescas na voz de poetas e romancistas que se
esforçavam para fazer do carnaval uma festa
moderna e civilizada que representasse a nova sociedade que pretendiam
ver nascer (PEREIRA, op. cit. 54, 55).
É
importante frisar que esta separação já havia sido tentada quase trinta anos
atrás, com o desfile das Grandes Sumidades Carnavalescas em 1855, que deu
inicio ao desenvolvimento das grandes sociedades. Daí o movimento da década de
80 ser uma reinvenção do carnaval, uma segunda tentativa de se implantar o
carnaval veneziano e deslocar da cena festiva o jogo do entrudo. O fracasso da
primeira tentativa fica patente nos dados apontados por Eneida (op. cit.: 24,
25). Uma nova portaria de 1889 do chefe de policia da capital recomendava que,
a despeito da “reprovação geral que nos últimos anos a população da Corte
manifestava contra o pernicioso jogo do entrudo”, estava em vigor todo um
conjunto de instrumentos coercitivos, códigos e posturas baixadas ao longo do
século XIX que punham fora da lei a persistente brincadeira, para o caso de
possíveis eventualidades em que “pessoas menos contidas pretendam pô-lo em
prática”.
Para
compreendermos esta persistência é importante observar que o entrudo também
sofreu no período algumas inovações que o tornava mais civilizado. Como em
geral ocorre, também neste caso seus sujeitos celebrantes lutaram por práticas
e adaptações que o atualizassem para assim atender a novas demandas festivas da
sociedade. Além do mais, muitas dessas novidades vinham de setores do próprio
comércio, interessados em apresentar inovações que ampliassem seu mercado.
Assim, as bisnagas de metal que a principio aspergiam simplesmente água, limpa
ou fétida, passaram a esguichar groselha, vinho e outras bebidas, e para os
limões de cheiro (1) se expande a regra de abastecê-los apenas com perfumes.
Eneida (op. cit.: 240) afirma que muitos consideravam que “sem o entrudo o
carnaval seria insípido”. Mesmo depois de 1855, com a instituição do desfile
das sociedades carnavalescas, o entrudo continuava imperando, “se bem que fosse
- digamos assim - melhorando”.
Como veremos, o êxito das grandes sociedades, as novas modalidades de cortejos carnavalescos como os cordões, ranchos e blocos que aparecem na década de 90; a grande ofensiva modernizadora da Reforma Passos, e finalmente, o aparecimento do corso, em1907, levaram o entrudo a uma progressiva agonia e seu inevitável desaparecimento do carnaval carioca. Eneida registra que um dos últimos fortes entrudos ocorreu em 1905, como se houvesse ressuscitado da “morte súbita” que sofrera em 1904, ano em que foi silenciado por uma forte investida repressora de Pereira Passos.
II.2) As grandes sociedades
A demanda por um novo carnaval foi um dos objetivo de intelectuais da segunda metade do século XIX, como José de Alencar, que em 1855, aos 26 anos de idade, era um dos oitenta sócios fundadores das Grandes Sumidades Carnavalescas. Um clube em que seus membros, segundo as palavras do romancista, eram “todas pessoa de boa companhia”. Seu primeiro desfile naquele ano foi precedido de uma providência essencial.
Antes do dia 23 em que cairia o entrudo, uma comissão composta pelo Dr.
Joaquim Francisco Alves Branco Muniz Barreto, coronel Polidoro Fonseca
Quintanilha João e o Dr. José Martiniano de Alencar dirigiram-se a S. Cristóvão
pedindo a S. M. O Imperador que viesse, com as princesas, para o paço da cidade
honrar com suas presenças o carnaval do ano e assistir à passagem do Congresso
(MORAIS FILHO, 1979: 32).
O desfile foi aberto
pela banda marcial do Congresso das Sumidades Carnavalescas, cujos integrante
vestiam uniformes de cossacos da Ucrânia. Havia clarins escoceses, D. Quixote,
mandarins, nobres do Cáucaso, Fernando o Católico, em meio a caleches puxadas
por belas parelhas, cujos carros iam cobertos por tecidos finos e colchas de
damasco. Num acontecimento que também sugere uma possível origem para o “samba
do crioulo doido”, os jornais de 1855 registraram “a maior transformação do
carnaval carioca, que o tornou célebre e rival do carnaval de Nice, Veneza e
Roma” (ENEIDA, op. cit.: 53).
Depois de 1855 surgiram
diversos desses clubes envolvendo sempre gente das classes superiores,
estudantes de medicina, comerciantes e funcionários públicos graduados. Muitas
das novas agremiações foram produtos de dissidências que fundaram outros
grupos. A Euterpe Comercial e os Zuavos Carnavalescos surgiram de desavenças
dentro das Grandes Sumidades Carnavalescas. Em linhas gerais foram dessas
agremiações que se formaram as três grandes sociedades que se fixaram na
história do carnaval carioca: os Tenentes do Diabo, clube fundado em 1855 mas
que só passou a realizar desfiles em 1867; os Fenianos (1869), que devem seu
nome aos soldados fenianos, irlandeses católicos que de 1865 a 1869 lutaram
para libertar-se do jugo inglês; e os Democráticos (1867). Conforme salienta
Eneida (op. cit.: 71), estes clubes eram mais lítero-musicais do que
propriamente carnavalescos. Alguns deles não foram carnavalescos por certo tempo,
como os Tenentes do Diabo que por mais de dez anos se limitaram a organizar
bailes, festas e reuniões literárias; outros, como os Estudantes de Heidelberg
e os Acadêmicos de Joanisberg, que formavam um grupo adepto à cultura alemã,
não faziam passeatas e limitavam-se a organizar bailes ou a participar, com
outros grupos, de bailes em teatros como o Lírico e o Ginásio do S. Pedro.
Os Acadêmicos de Joanisberg brigaram e uma parte de seus membros fundou o Clube X, que logo se distinguiu como o mais elegante da época. Para um de seus desfiles que exibia uma caravana oriental chegou a importar camelos da Ásia. Seu maior destaque porém foi ter introduzido no cortejo o chamado carro de idéias, que será um das principais inovações responsáveis pelo revigoramento das grandes sociedades na década de 80 (2). Os membros do Clube X fizeram parte daquela geração que Morais Filho (op. cit.: 33) afirma ter trazido para as grande sociedades novas idéias, como os carros alegóricos, também chamados de “idéias”, na década de 70. É interessante notar que parte dessas inovações ocorre com a substituição do “objeto celebrado”, através do abandono daquelas personagens e epopéias clássicas que formavam os temas dos desfiles das grandes sociedades até então, temas que serão substituídos pela crítica política e social contemporânea, por sinal até aquela época uma espécie de monopólio de atrevidos mascarados avulsos. Outra inovação foi a apresentação de mulheres seminuas, meretrizes de renome inclusive, que nos anos 80 se somaram ao luxo preexistente nos desfiles. O que não impediu, entretanto, que as novas gerações criticassem insistentemente em seus antecessores o excessivo apego ao luxo, afirmando que sua principal missão e inovação era a crítica, elevada à condição de missão civilizadora. Não se deveria desfrutar o carnaval de modo ingênuo ou alienado, afirmaram Os Democráticos em 1882:
O carnaval de hoje não é mais aquela
monstruoso bacanal de outrora, aquela horrível saturnal da Grécia (...) Não,
ele é hoje a crítica viva dos acontecimentos! A Têmis moderna! O grande
vingador! (cf., PEREIRA, op. cit.: 75).
Assumindo a crítica de
seu tempo, dos poderosos e das injustiças do presente, isto é, adequando seu
“objeto celebrado” e suas práticas rituais `a demanda da sociedade, era inevitável
que as grandes sociedades caíssem no gosto popular. Tendo como enredo campanhas
públicas como a abolição e a república promoveram seus desfiles ao lugar de “um
dos principais instrumentos de difusão de uma mensagem de igualdade civil pela
sociedade como um todo - em uma tarefa em que os próprios literatos julgavam no
período ser sua própria missão” (PEREIRA, op. cit.: 79). Dessa missão faziam
parte as grandes sociedades, cabendo-lhes continuar a luta contra o entrudo,
postura que agora se estenderia ao resto dos costumes populares. Em 1886, Os
Progressistas da Cidade Nova, por sinal uma de suas mais pobres agremiações,
clamava :“Carnaval afaga a população... Fora a bisnaga! Fora o limão!”.
Não estavam sob sua crítica apenas os políticos da corte, o Império, a escravidão. Suas baterias também se voltaram contra os hábitos populares, suas crenças e necessidades, ironizando-as. Em 1889, por exemplo, os Democráticos se aliaram à campanha contra as moradias insalubres nas quais viviam os pobres da cidade, apresentando um carro alegórico simbolizando o célebre cortiço cabeça de porco. Das narinas, bocas e orelhas “apareciam assustados inquilinos, irrequietos com a presença de delegados da Inspetoria de Higiene que rondavam o local” (PEREIRA, op. cit.: 82). Aliás, em 1884, os Democráticos anunciavam que o seu carnaval era de “espirito fino” e muito distinto “desse espirito grosseiro e canalha que inebria as crioulas baianas e as pretas minas”.
Apesar da oposição das grandes sociedades ao popular e ao passado, Pereira observou que muitos de seus membros intelectuais viram nos seus desfiles veículos para suas mensagens modernizantes, de suas discussões mantidas em círculos sabidamente estreitos. Em um texto de 1882, o poeta mineiro Silvestre Lima afirma que o carnaval é essencial para a “reconstrução da sociedade” pois ali estava a “única manifestação artística” onde todos os grupos sociais poderiam se entender.
Para reconstruir uma sociedade desta
natureza, sem política e sem arte, sem moralidade e sem família, não é
suficiente o golpeamento fulminante da pena, a gargalhada destruidora (...), o
desprezo aniquilador do sarcasmo; é necessário além de tudo - o carnaval.
Porque o carnaval é a única manifestação artística que tem conseguido este
imenso triunfo: fazer-se compreendido por todos, desde aqueles que possuem a
penetração mais fina até os mais rústicos, os ignorantes e os analfabetos (cf.,
PEREIRA, op. cit.: 86).
Dentro dessa visão, as grandes sociedades não só expressavam a civilização como também eram veículo estratégico indispensável para o alcance da modernização. Embora antagônicas ao povo, especialmente pela crítica de seus costumes, o fato é que seus questionamentos e troças às autoridades e às instituições atraíram o gosto dos “de baixo”, sempre as maiores vítimas das crises e injustiças sociais. De qualquer modo, ainda que controlada pelos de cima e de seu relativo êxito na luta contra o entrudo pela hegemonia do carnaval carioca, suas exibições passavam pelo crivo da assistência pública, sobretudo do populacho, que apoiava mas também desaprovava com relativa autonomia e em praça pública seus enredos e carros de crítica.
Uma das inovações que contribuíram para o aumento da visibilidade das grandes sociedades foram os “pufes”, que segundo Eneida (op. cit.: 76) começaram a aparecer em 1877. Proveniente da francês “pouf”, um termo polissêmico naquela língua, em português significa “anuncio impudente”. Os “pufes” das grandes sociedades eram “uma espécie de desafio guerreiro em versos”, que eles atiravam entre si menosprezando os adversários, se autoelogiando, exibindo suas críticas de modo geral. Podiam ser também descrições dos carros alegóricos, publicadas em uma ou mais paginas dos jornais. Seus autores foram poetas, como Olavo Bilac e Emílio de Menezes, cronistas carnavalescos como Francisco Guimarães (O Vagalume) e Mauro de Almeida (Peru dos Pés Frios). Eneida (ibid.) relacionou alguns desses versos, como os apresentados pelos Fenianos em 1879:
Na Itália e na Alemanha
E mais recente na moderna Espanha
Onde o socialismo apanha
E caça reis por mais amor aos gamos!
Em
1891, Os Democráticos se voltaram para o direito ao voto feminino e um de seus
carros alegóricos estampava:
Que o povo se lhe permita
Mas (exceção esquisita
de quem tal reforma quer)
Nem para o júri sorteada
Nem só de críticas ao “stablishment” viveram as grandes sociedades, mesmo porque a maior parte de seus membros dele fazia parte ou com ele se identificava. Em 1906, em plena Avenida Central recém inaugurada, no ícone maior da Reforma Passos, os Pingas Carnavalescos exibiram após a Comissão de Frente, “um carro alegórico representando a nova cidade surgindo de uma outra e servindo de pedestal aos bustos de Pereira Passos e Paulo de Frontin”. Em 1908, os heróis dos Fenianos foram Rio Branco e Rui Barbosa (ENEIDA, op. cit.: 89). Em 1932, época já não tão gloriosa paras as grandes sociedades como na virada do século, os Tenentes do Diabo homenageavam o prefeito da cidade.
Haveis de propagar, no mundo a fama
Da nossa Pátria as Glórias
refulgentes
Na profunda unidade de quem ama
Fenianos, Democráticos, Tenentes
Como
estamos vendo, a política foi envolvida pelo carnaval com as grande sociedades.
Desde aquele época se pode perceber que festa e política estão efetivamente
relacionadas de forma ordinária no carnaval carioca moderno. A evidência deste principio
é importante, por exemplo, no caso das escolas de samba, para que seus aspectos
políticos não sejam resumidos a um problema intrínseco a um conjuntura
populista. Na realidade, qualquer grupo de promotores de uma grande festa
popular é obrigado, pelo simples transtorno produzido na vida cotidiana de
qualquer comunidade, a estabelecer algum tipo de relação com os poderes
constituídos. Pensamos que isto pode ser útil para analisarmos as grandes
sociedades, os ranchos e as escolas de samba. Neste último caso, mais
especificamente, poderemos iniciar a discussão desatados da crítica
antipopulista e não menos maniqueísta de Queiróz (1984).
Além de confirmar a
relação entre festa e política em nosso carnaval, as grandes sociedades também
já anunciavam um problema que vamos chamar de “nacionalização ou
cariocarização” do carnaval. Para entender o que com isso estamos querendo
dizer, é necessário recordar que as grande sociedades levaram três décadas para
alcançar a hegemonia do carnaval carioca, o que só ocorre quando elas
“nacionalizam” ou pelo menos “localizam” o modelo de carnaval veneziano junto à
realidade concreta do Rio de Janeiro. Assim procedendo atualizaram seus rituais
e seu “objeto celebrado”, passando a atender a um espectro mais largo da
demanda festiva daquela sociedade. É claro que estas agremiações e seus
participantes não eram nacionalistas, suas preocupações eram com o moderno, o
civilizado e o europeu, porém, assumindo a crítica da realidade local,
enraizaram sua manifestação dentro da comunidade e desta foi recebendo
crescentes graus de adesão e identificação.
Devemos agora deixar as grandes sociedades para nos determos numa muito simples manifestação do carnaval carioca, o Zé Pereira, que consistia de um ou mais homens que saiam às ruas batendo em um grande tambor de modo a produzir o maior barulho possível. Não se tratava de um conjunto musical e por isto também não havia a menor preocupação quanto a produção de ritmo e muito menos de dança. Segundo Edmundo (1938: 779):
O Carnaval foi sempre, entre nós, uma festa de plebe.
E de rua. Zabumbadas. Pandeiradas. Gaitadas. Gritos: vivôo!- Berrarias:
Evoheéé! Desafogo grosseiro da massa. Ventura desalinhada de almas impetuosas e
rudes. Alegria reloucada e pagã. Em 1852, para aumentar tanta balbúrdia, como um fantasma, surge o
neurasthenisante Zépereira! Sete ou oito maganos vigorosos, tendo por sobre o
ventres empinados satânicos tambores, caixas de rufo ou bombos, por entre
alucinantes brados, passam pelas ruas, batendo surrando martelando, com
estrondo e fúria, a retesada pele daqueles roucos e atroadores instrumentos. (...)
Não se canta. De resto as palavras não seriam ouvidas, ante o ensurdecedor e
reboante conflito de estrondos e retumbos que a fúria de braços vigorosos
arranca, violentamente, ao ôco das caixas (...)
Dig, Dig, Bum, Dig, Bum.
Dig, Bum,
Dig, Bum,
Dig, Dig, Dig, Bum.
Dig, Bum.
Bum, Bum.
Fato inegável é também que o Zé Pereira gozou de ampla simpatia popular, de tal modo que não houve rancho que não tenha cantado:
E viva o Zépereira
Que a ninguém faz mal
Dos dias de carnaval!
Para Eneida (op. cit.), o Zé Pereira nasceu possivelmente em 1846. Baseando-se em Vieira Fazenda, a descrição que fez coincide com a de Edmundo em quase tudo. Seu nascimento demonstra como uma manifestação carnavalesca pode ter origem de ações despretensiosas dos indivíduos, mas que, não obstante, caindo de forma contagiante e quase instantaneamente no gosto popular, transforma-se rapidamente em uma das faces mais tradicionais da festa, um mecanismo que, como veremos adiante, também ocorrerá com o moderno e elitista corso. Também é interessante notar como o Zé Pereira - outra manifestação da cultura popular portuguesa -, se enraiza no Rio de Janeiro ao mesmo tempo da implantação do carnaval veneziano, sendo notável que apesar de seu arcaísmo, total improvisação e espontaneidade, tenha figurado entre os grupos carnavalescos mais destacados na paisagem do carnaval carioca da segunda metade do século XIX. Quer dizer, no mesmo momento em que se organizava racionalmente a superação de manifestações arcaicas no carnaval carioca, os partidários das grandes sociedades viram brotar “um fantasma”: “o neurasthenizante Zépereira”.
A história dessa
manifestação começa quando um português, sapateiro com oficina na rua São José,
emigrado da cidade do Porto, numa segunda feira de carnaval, possivelmente ao
se recordar com patrícios das peripécias cometidas em um antigo folguedo da
terra, resolveu alugar alguns bombos e junto com eles sair à rua zabumbando-os.
Nas palavras de Eneida (op. cit.: 44), “sucesso inaudito - e quando ao amanhecer
, já ‘meio na chuva’ regressou ao lar esse triunvirato de foliões podia clamar
como César: veni, vidi, vinci”. Como
se viu nos anos seguintes e por toda a segunda metade do século XIX, se
formaram muitos Zé Pereiras pela cidade. Quanto ao seu nome, existem aqueles
que lembram que em alguns lugares de Portugal o nome Zé Pereira era dado ao
bombo, enquanto outros atribuem ao estado etílico dos companheiros de José
Nogueira naquela segunda feira de carnaval, já que no auge da confusão seus
amigos lhe davam vivas trocando seu nome por Zé Pereira.
Na tentativa de situar o imediato sucesso do Zé Pereira e a favor da evidência de que tenha sido uma importação de um folguedo português, deve-se assinalar que a forte presença de imigrantes desta nacionalidade no Rio de Janeiro naturalmente impulsionou o início de sua trajetória. De qualquer modo, como escreveu Eneida (op. cit.: 47), “natural de Portugal ou não, o Zé Pereira foi traduzido em brasileiro e tomou conta da cidade; virou cidadão carioca”. Em 1896, já vivendo um certo declínio, chegou a ser representado por uma companhia teatral como uma paródia da peça “Les Pompiers de Nanterre”, na qual o comediógrafo Francisco Correia Vasques, cantava: “E viva o Zé Pereira, pois a ninguém faz mal...” Neste mesmo ano Os Fenianos, ao inaugurar seus bailes de carnaval gritavam. “Mataram o Zé Pereira (...)”. A julgar pelo que dizem os historiadores tratava-se na verdade de uma morte anunciada, que se consumaria de fato logo depois da Reforma Passos, tal como se deu com o patrício entrudo. Como afirmou Edmundo (op. cit.: 783, 784):
Só depois de 1904, com a remodelação da
cidade e o natural cancelamento de certas tradições alienígenas, é que o
Zépereira começa a esmorecer. O Rio civiliza-se, diz-se pelos jornais. E os ruídos
bárbaros são convidados a desaparecer de uma cidade que começa a cultuar a
civilização! Acaba ahi por 1906, 7 ou 8, como todas as coisa acabam, mas com
esplendor e glória, isso depois de ter interferido, poderosamente, nas alegrias
patriciais, avivando-as, exaltando-as, durante cerca de meio século.
Um pouco mais adiante Edmundo (op. cit.: 823, 827) observou que o Zé Pereira foi superado também em razão das líricas cantigas e de apuradas e ensaiadas vozes apresentadas pelos cordões carnavalescos no princípio do século XX. “O bom gosto tinha que banir o batecum”, pois nossa canção “já formosa e original, ofendida e humilhada, pensa na revanche”.
III) Principais manifestações carnavalescas na República Velha: cordões, ranchos, corsos e blocos
Nos vinte anos que se estenderam de 1890 a 1910 identifica-se o aparecimento de quatro novas formas de manifestação carnavalescas: os cordões, ranchos e blocos, na década de 90, e o corso, em 1907. Enquanto os cordões, ranchos e blocos descendem de festas religiosas do mundo colonial escravista, com forte presença de negros e africanos, o corso era, como os automóveis, uma novidade absoluta e deleite da elite moderna da cidade, dando continuidade e reforçando os propósitos das grandes sociedades em busca de um carnaval civilizado. Neste período a população carioca cresceu mais de 50%, passando de quinhentos para oitocentos mil habitantes, adicionando um contingente de imigrantes e de grupos sociais cuja presença se relaciona diretamente com o aparecimento de novas manifestações carnavalescas, responsáveis em grande parte pela intensidade e diversidade de um carnaval que se assumia cada vez mais como uma das maiores festas do mundo. Se a isto somarmos o entrudo e o Zé Pereira que ainda estavam vivos, os incontáveis bandos de mascarados - diabinhos, morcegos, mortes, índios, “clows” (clóvis) -, bailes e festas realizados em teatros e clubes para os grupos mais abonados, poderemos começar a entender que os contemporâneos não exageravam quanto às dimensões do carnaval do Rio de Janeiro na virada do século, se bem que por distintas razões também existiam, como sempre, aqueles que achavam que “o carnaval estava morrendo”.
Pereira
(op. cit.: 198) observou que os pessimistas sobre o carnaval eram, entre
outros, partidários das grandes sociedades que pressentiam a iminente ameaça à
sua hegemonia carnavalesca pela emergência das novas manifestação populares no
final do século XIX. De todo o jeito, a quantidade de modos como se podia
brincar o carnaval naquele período nunca foi tão grande em toda a história
carioca. Não seria exagero dizer que houve uma superoferta de rituais
carnavalescos e superconcorrência pela demanda festiva, algo que junto a outras
explicações pode ajudar a compreender que algumas delas não sobrevivessem ao
período e, quase de súbito, desaparecessem.
III.1) Os cordões
Para começarmos a descrição dos cordões, voltemos à observação de Edmundo de que a nossa modinha venceria o entrudo, para com ele irmos a um lugar em que um destes grupos festivos ensaiavam suas apresentações, danças e cantorias. Edmundo (op. cit.: 827) nos leva agora à sede da “Sociedade Carnavalesca, Familiar, Dançante, Beneficente, e Recreativa Tira o dedo do pudim”, situada no alto da ladeira do João Homem, Morro da Conceição, grande orgulho dos moradores do lugar. Já no meio da “íngreme viela, torta, feia, imunda, porém movimentadíssima”, comenta novamente o fim do Zé Pereira, comparando-o com a música ali encontrada:
De longe, saúda-nos, agora, a bulha, não
do rude e atordoante Zépereira, já repousado, mudo, porém a de mil bocas:
gritos, berros, ou estrídulas risadas, de envolta com o afinar de instrumentos
de corda ou sopro, balbúrdia bruhahah, denunciado desafogo e alegria da massa
ingênua que livremente se diverte.
A linha evolutiva dos cordões encontra suas origens nos cucumbis, aquelas manifestações carnavalescas de negros que Debret viu ao lado do entrudo no Rio de Janeiro do princípio do século XIX. Segundo Morais Filho (op. cit.: 109), na Bahia, os cucumbis, que nas demais províncias se chamavam de congos, eram formados por negros de distintas nações que se reuniam nas festas do Natal e na época do entrudo, em certas casas e em tablados instalados em praças ou ao lado das igrejas, para as apresentações tradicionais de “chegança dos Mouros e Marujadas”. Os congos ou cucumbis também participavam de cerimônias sagradas como cortejos fúnebres de escravos ou pretos forros que eram membros de dinastias africanas. Marchavam em desfiles que chegavam à centenas de pessoas, sacudiam chocalhos, cantavam e dançavam. A princípio entoavam hinos em línguas africanas, com o tempo foram intercalando versos em português e toadas produzidas localmente, “(...) o que em nada alterava a índole do baleto selvagem dos Congos, com o seu enredo e evoluções guerreiras, seus reis e princesas de forma correta e altivos, seus tamborins e canzás, que desenvolvem-lhes em torno de uma atmosfera tempestuosa e imitativa”.
O vestuário geral consiste em círculos
de vistosas e compridas penas aos joelhos, à cintura, aos braços e aos punhos;
rico cocar de testeira vermelha; de botinas de cordovão enfeitadas de fitas e
galões; calça e camisa de meia cor de carne, e ao pescoço das mulheres e
homens, miçangas, corais e colares de dentes, dando uma ou mais voltas (MORAIS FILHO,
op. cit.: 110).
Como
concluiu Eneida (op. cit.: 123), muito daquele vestuário e das personagens dos
cucumbis existiam nos cordões que continuavam a sair nas primeiras décadas do
século XX, “mesmo quando parte deles se transformaram em ranchos”. Entretanto,
adiantando um pouco o assunto, observamos que quando se transformaram em
ranchos abandonaram a orquestra exclusiva de instrumentos africanos de
percussão, incorporando cordas e metais, trocando assim o ritmo de suas músicas
pela marcha-rancho, que por sua vez era uma derivação da marcha, peça musical
utilizada em paradas militares e procissões religiosas que inclusive foram
assimiladas pela música clássica no século XVIII. Não por acaso tanto Eneida
como Soihet admitem que “os ranchos eram cordões mais civilizados”.
João do
Rio (1987: 92) situou a origem dos cordões nas procissões de Nossa Senhora do
Rosário dos tempos coloniais, quando os negros e escravos saiam às ruas
fantasiados “de reis, de bichos, de pajens, de guarda, tocando instrumentos africanos,
e paravam em frente à casa do vice-rei a dançar e a cantar”. O cronista
acrescenta ainda que numa dessas pomposas visitas ao governante, um grupo
reivindicou que o Vice Rei concedesse a um dos escravos o título de rei, o que
foi prontamente negado, porém, em troca, foi oficializada a permissão para
realizarem seus folguedos.
De fato, podemos constatar através de uma das notas escritas em Moraes Filho (op. cit.: 115) por Luís da Câmara Cascudo, que o governo metropolitano encaminhou em 4 de julho de 1780 a seguinte ordem ao Capitão Geral de Pernambuco: “que Sua Majestade ordenava que não permitisse as danças supersticiosas e gentílicas : enquanto as dos pretos, ainda que pouco inocentes, podiam ser toleradas, com o fim de evitar-se com este menor mal, outros males maiores”. A exceção concedida por Sua Majestade aos “pretos” para que realizassem seus folguedos, mesmo considerando que eles eram “pouco inocentes”, mostra a longa tradição de luta destes grupos sociais por existirem “festivamente” na sociedade brasileira. Uma existência que sempre exibiu conflito, negociação e barganha entre as partes. As danças e cantorias realizadas à porta da residência do Vice-Rei podem ser interpretadas como uma situação de afirmação da relativa autonomia de um grupo social frente àquele que o dominava e não como uma situação de subordinação e alienação do escravo face ao senhor.
Considerando uma das melhores fontes que encontrou para o estudo dos cordões, Eneida (op. cit.: 124) cita uma série de reportagens publicadas na Gazeta de Notícias, em 1906, sob o título de “Psicologia dos Cordões”, que registrou a transformação dos cucumbis em cordões.
Houve um tempo em que uma das
características mais interessantes do nosso carnaval eram os cordões de velhos
piruetando por essas ruas afora desde sábado até à madrugada de cinzas,
atraindo a atenção do público pelas suas ricas vestimentas e suas famosas
letras. Hoje os velhos são os que viram esses cordões. Quanto aos outros
desapareceram por completo e agora só se vêem os índios, os marinheiros, os
tocadores de adufes. Os cordões passaram a denominar-se “grupos” e alguns foram
mais longe e adotaram a denominação clube, mais elegante e mais em harmonia com
uma cidade que já possui avenidas. É verdade que o pessoal não mudou muito nem
nas características nem nos cantos, nem na música. Mas o fato é que os cucumbis
tão originais e os Vassourinhas precursores - quem diria? - dos Mata Mosquitos
desapareceram como desapareceram os velhos.
Não por acaso Eneida só começa a encontrar registros de cordões na imprensa a partir de 1886, com o aparecimento do Estrela da Aurora. Nos anos seguintes, progressivamente surgem outros grupos, como os Teimosos Carnavalescos, em 1895. Daí por diante o processo se acelera e, em 1902, começa “uma verdadeira era dos cordões”, chegando a polícia a licenciar 200 cordões naquele ano e não se sabe quantos deixaram de obter a autorização oficial. Em 1905, a reprodução desses grupos foi de tal envergadura que O País conjecturou que, na falta das grandes sociedades, “os cordões fariam magnificamente o carnaval de rua”. Tal entusiasmo justificou que em 1906 a Gazeta de Notícias realizasse um primeiro concurso entre cordões. Contudo, “em 1911 desaparecem os antigos cordões e em seu lugares surgem os ranchos”, assim termina Eneida (op. cit.: 131) seu relato sobre a história dos cordões, sem revelar qualquer espanto, perplexidade ou questionamento de uma situação na qual, repentinamente, centenas de grupos carnavalescos desaparecem ou se transformam em outra modalidade de manifestação como o rancho.
Já nas duas ultimas décadas do século passado, com o inegável sucesso e proeminência das grandes sociedades, se dizia que o carnaval do Rio era uma das maiores festas do mundo. Seus desfiles na Rua do Ouvidor era a parte mais prestigiosa desse espetáculo, mas não poderiam nem de longe expressar os sentimentos da maior parte do público carnavalesco, já que o luxo exigido e os grandes recursos mobilizados dificultavam seriamente sua disseminação entre as classes populares. A outra parte dessa festa, a maior parte, era o carnaval dos cordões. Sua grandes dimensão pode ser vislumbrada se nos pusermos a imaginar o que deve ter acontecido, na virada do século, em meio ao trauma da Reforma Passos, quando algumas centenas de cordões percorrerram a cidade desde a zona rural à rua do Ouvidor. Este espetáculo veio crescendo nos fins de semana anteriores, embalando a vida de seus habitantes com seus ensaios de batuques e cantorias nos bairros e recantos populares, inclusive de uma zona rural. Vejamos o extraordinário depoimento de João do Rio sobre os cordões, cujo conteúdo “bakhtiniano” é patente pois, como observou Soihet (op. cit.: 79), “o autor intui neste trecho as imagens que Bakhtin percebe em Rabelais acerca do tema da morte”.
Oh! Abre ala!
Que eu quero passá
Estrela d’alva
Do Carnavá!
Era em plena Rua
do ouvidor. Não se podia andar. A multidão apertava-se sufocada. Havia sujeitos
congestos, forçando a passagem com os cotovelos, mulheres afogueadas, crianças
a gritar, tipos que berravam pilhérias. A pletora de alegria punha desvarios em
todas as faces. Era provável que do Largo de São Francisco à Rua Direita
dançassem vinte cordões e quarenta grupos, rufassem duzentos tambores,
zabumbassem cem bombos, gritassem cinqüenta mil pessoas. (...) Nós íamos indo,
eu e meu amigo, nesse pandemônio. Atrás de nós, sem colarinho, de pijama,
bufando, um grupo de rapazes acadêmicos, diplomatas e futuras glorias
nacionais, berrava furioso a cantiga do dia, essas cantigas que só aparecem no
carnaval:
Há
duas coisas
Que
me faz chorá
É
nó nas tripa
E
bataião navá
De repente, numa
esquina, surgira o pavoroso abre-alas, enquanto acompanhado de urros, de
pandeiros, de xequeres, um outro cordão surgia.
Sou
eu! Sou eu!
Sou
eu que cheguei aqui
Sou
eu Mina de Ouro
Trazendo
nosso Bogari.
Era
intimativo, definitivo. Havia porém outro. E esse cantava adulçorado:
Meu
beija-flor
Pediu
para não contar
O
meu segredo a Iaiá.
Só
conto particular.
Iaiá
me deixa descansar
Rema,
rema, meu amor
Eu
sou o rei do pescador
Na
turba compacta o alarma ocorreu. O cordão vinha assustador. À frente um grupo
desenfreado de quatro ou cinco caboclos adolescentes. Com os sapatos desfeitos
e grandes arcos pontudos corria abrindo as bocas com berros roucos Depois um
negralhão todo de penas, com a face lustrosa como piche, a gotejar suor,
estendia o braço musculoso e nu sustentando o tacape de ferro. Em seguida
gorgolejava o grupo vestido de vermelho e amarelo com lantejoulas d’oiro a
chispar no dorso das casacas e grandes cabeleiras de cachos, que se confundiam
com a epiderme de um empastamento nauseabundo. Ladeando o bolo, homens em
tamancos ou de pés nus iam por ali, tropeçando, erguendo archotes, carregando
serpentes vivas sem os dentes, lagartos enfeitados, jabutis aterradores com
grandes gritos roufenhos.
Abriguei-me a uma porta. Sob a chuva de
confetti, o meu companheiro esforçava-se por alcançar-me.
-
Porque foges?
-
Oh estes cordões! Odeio cordão.
-
Sério!
-Ele
parou, sorriu:
-
Mas que pensavas tu? O cordão é o carnaval, o cordão é vida delirante, o cordão
é o ultimo elo das religiões pagãs. Cada um desses pretos ululantes tem por sob
a belbutina e o reflexo discrômico das lantejoulas, tradições milenares; cada
preta bêbada, desconjuntando nas tarlatanas amarfanhadas, recorda o delírio das
procissões em bíblos pela época da primavera e a fúria rábida das bacantes. Eu
tenho vontade, quando os vejo passar zabumbando, chocalhando, berrando,
arrastando a apoteose incomensurável do Rumor, de os respeitar, entoando em seu
louvor a “prosódia” clássica com as frases de Píndaro - salve grupos floridos,
ramos floridos da vida...
De fato, no texto de João do Rio os cordões eram naquele momento o último tipo, um exemplar do mais moderno “elo” das festas primitivas e populares ao longo da história. Como reconhece Soihet (ibid.), misturavam o profano com o sagrado e atualizavam a cultura grotesca (3) tal como ela é mostrada por Bakhtin nos carnavais medievais. É também muito interessante observar, do ponto de vista teórico e filosófico, que o respeito revelado por João do Rio pelos cordões através de Píndaro (4) comprova a observação de Martin-Barbero (1997), segundo a qual uma das maiores contribuições da descoberta da cultura popular foi ela ter servido como uma cunha no pensamento moderno para a percepção da alteridade. Mas João do Rio não ficou apenas no plano filosófico da festa, logo voltando para os intensos acontecimentos da rua do Ouvidor.
Parei a uma porta, estendendo as mãos.
- É a loucura,
não tem dúvida, é a loucura. Pois é possível louvar o agente embrutecedor de
cefalgias e do horror?
- Eu adoro o horror. É a única feição
verdadeira da humanidade. E por isso adoro os cordões, a vida paroxismada,
todos os sentimentos, todas as coleras a rebentar (...). Achas tu que haveria
carnaval se não houvessem cordões? Achas tu que bastariam os préstitos idiotas
de meias dúzia de senhores que se julgam engraçadissimos ou esses pesadelo dos
três dias gordos intitulado - máscaras do espírito? Mas o carnaval teria
desaparecido, seria hoje menos que a festa da glória ou o “bumba-meu-boi” se
não fosse o entusiasmo dos grupos de Gamboa, do Saco, da Saúde, de S. Diogo e
da Cidade Nova, esse entusiasmo ardente, que meses antes dos três dias vem
queimando como pequenas fogueiras para acabar no total e formidável incêndio
que envolve e estorce a cidade inteira. (...) Os cordões são os núcleos
irredutíveis da folia carioca, brotam como um fulgor mais vivo e são antes de
tudo bem do povo, bem da terra, bem da alma encantadora e bárbara do Rio.
Quantos cordões julgas que há da Urca ao Caju? Mais de duzentos! E todos, mais
de duas centenas de grupos, são inconscientemente os sacrários da tradição
religiosa da dança, de um costume histórico e de um habito infiltrado em todo o
Brasil...
Segundo Edmundo (op.
cit.: 815-818), em 1901 os cordões ainda eram apenas a alegria do bairro,
poucas vezes se deslocando para o centro da cidade, uma delas especialmente
para expor no saguão do Jornal do Brasil seu estandarte. O jornal retribuía a
honra em guardar semelhante troféu, publicando pequenas crônicas de ditas
agremiações, registrando suas origens, seus feitos e principalmente o nome
completo de seus organizadores. Até nos lugares distantes e ainda rurais do
Distrito Federal, como Santa Cruz e Campo Grande, os cordões sonhavam aparecer
na vitrine do Jornal do Brasil e alcançar publicidade tão valiosa. Quando
visitavam a redação do jornal cantavam coisas do tipo:
Este estandarte consagrado
Da cô do má e do rubi,
Vem para ser depositado
Neste jorná que é o mais amado
Entre os jorná deste Brazi
Como vimos, essa prática de ganhar publicidade através dos jornais tinha sido um dos elementos usados pelas grandes sociedades através dos pufes. Agora é incorporada pelos cordões e também pelos ranchos. No futuro, quando surgirem as escolas de samba, será expediente largamente aplicado por seus promotores como meio de divulgação e obtenção de legitimidade frente à cidade.
Ao lado de buscar boas
relações com a imprensa e o público em geral, os cordões seguiam em seus
desfiles a celebração de seu mundo sagrado e profano. João do Rio, na crônica
citada, escreveu:
E no meio daquela
balbúrdia infernal, como uma nota ácida de turba que chora as suas desgraças
divertindo-se, que soluça cantando, que se mata sem compreender, este soluço
mascarado, esta careta d’Arlequim choroso eleva-se do “Beija-Flor”:
A 21 de janeiro
O “Aquidabã”
incendiou
Explodiu o paiol
de pólvora
E o coro:
Os filhinhos
choram
Pelos pais
queridos
As viúvas soluçam
Pelos seus
maridos
Era horrível.
Fixei bem a face intumescida dos cantores. Nem um deles sentia ou sequer
compreendia a sacrílega menipéia desvairada do ambiente. Só a alma da turba
consegue o prodígio de ligar o sofrimento e o gozo na mesma lei da fatalidade,
só o povo diverte-se não esquecendo as sua chagas, só a populaça desta terra de
sol encara sem pavor a morte nos sambas macabros do carnaval.
Há outro episódio ainda mais comovente, acontecido em 1902 e narrado por diversos autores. Destacamos a narrativa de Edmundo (op. cit.: 844), que Soihet com razão observou ser um relato cinematográfico e ousamos dizer que bem poderia ser um roteiro que Glauber Rocha não recusaria. Trata-se do enterro de Angelino Gonçalves, o Boi, e Jorge dos Santos, integrantes do cordão Filhos da Estrela de Dois Diamantes, vitimados em confronto com o cordão rival Filhos da Primavera, no domingo de carnaval, na esquina da rua Marques de Abrantes com a Praia de Botafogo.
Saem os corpos do
necrotério, que então se instala no edifício da Faculdade de Medicina, sito à
Praia de Santa Luzia, junto à Santa Casa. Os da Estrela dos Dois Diamantes
deixam a morgue organizando o préstito mortuário, com seu estandarte envolto em
crepe, as caixas de rufo teatralmente em funeral embora os sócios dentro das
fantasias as mais escandalosas e berrantes. Os caixões negros e pobres vão à
frente. A seguir, numa carreta, flores, palmas, coroas e grinaldas. Desce o
préstito, que é numeroso, caminho do Catete. Pelos lugares por onde passa, o
povo, reverente, se descobre. As senhoras persignam-se. Rezam. Se a tragédia
afligiu toda a cidade! (...) Vai o bando lúgubre e silencioso roçando as
calçadas do Largo da Glória quando, súbito surge-lhe pela frente, carregando
pendões carnavalescos, caixas de rufo, bombos e tambores, um povaréu enorme,
que ondula. São variadas agremiações congêneres que, em peso, querem, também,
homenagear os heróicos batalhadores de Momo, no Campo da “Honra” e do “Dever”
colhidos pela Morte. Os jornais da época dão o nome dessas agremiações. São
elas: Filhos do Poder do Ouro, Destemidos do Catete, Maçãs de Ouro, Rainha das
Chama e Triumpho da Glória. É um espetáculo magnífico. (...) Centenas e
centenas de homens vestindo as mais berrantes e excêntricas indumentárias de
carnaval (...). Formados em continência, deixam passar os esquifes onde
repousam os mortos. Depois, encorporam-se à massa espessa de acompanhadores.
Pela rua do Catete segue o formigueiro humano, caminho de Botafogo, em passo
ritmado (...), quando um dos ranchos tem a idéia de fazer soar, sobre a pelica
de seus tambores, rufos melancólicos, em ritmada e fúnebre surdina:
pram...pram...pram..pram... A idéia é amável. Agrada. Outros ranchos imitam-na.
Rufam também: pram...pram...pram... O ruído dos passos, nas calçadas, é vencido
pelo planger das pelicas que as vaquetas barulham. Ganha um pouco de vida a
comitiva enorme. À frente, sempre, os dois ataúdes que dominós, diabos, clows e
pierrots carregam. Vão todos em marcha lenta (...) quando rompe uma voz
misteriosa, num cristalino canto que se eleva, em adagio magnifico (...) A
toada impressiona. Comove. É profunda. É serena. A princípio desenha angustia.
É pranto e é sofrimento. Depois, desenrolada, ganha um ímpeto mais vivo mais
decisivo. (...) Aqui, ali, acolá, já cangloram instrumentos. Este clangor
aumenta. É quando entra, animando-os, a bulha singular dos reco-recos. E dos
pandeiros e chocalhos. Dentro de pouco o cantar ensurdece. Toma corpo.
Ascende.(...) Já alegre. E profano. E momico. E canalha. É o samba! As
mulatinhas começam a rebolar as sobras dos quadris, saracoteiam negras crioulas
de grandes saias rodadas (...) Os estandartes rodopiam no ar (...). A loucura é
geral. Quando chegam ao cemitério, os funcionários da Santa Casa entreolham-se,
espantados. Entram os dois caixões aos boléos, os mascarados que os carregam
aos empurrões aos evohés. À frente deles, já passou um bando de índios
emplumados, de arco, flecha e tacape, cantando, silvando (...). Quando a cova
úmida e fria recebe os corpos que se enterram e cruzam no ar confete e
serpentinas, o cemitério está coalhado de mascaras, de fantasiados alacres, que
se agitam, massa colorida que se esparrama, fala, ri, barulha, gargalha, entre
cruzes de pedra, ciprestes, anjos de mármore que abençoam, lousas, urnas
funerárias e salgueiros (...) Sabbat magnifico! Momo domina seus muito amados
filhos, soberbo e colossal, do seu trono invisível. É quando se vê um folião
representando a figura da Morte, na sua negra e sinistra indumentária, tendo na
mão esquerda um crucifixo de prata e na outra uma tíbia, talvez autêntica,
talvez achada no lugar, subir para um mausoléu de granito, gritando forte aos
carnavalescos que o saúdam, como se fosse ele a própria alma carioca que ali
estivesse a gritar cheia de sinceridade e de vigor:
- Viva o Carnaval!
Ao contrário do que sugere Eneida (op. cit.) os cordões não desapareceram em 1911, sendo substituídos pelos ranchos. Isto porque a história destas duas manifestação não foi determinada por uma relação de antecedência e conseqüência, mas de paralelismo e convergência, o que aliás a historiadora não desconheceu, pois, em outro ponto, afirmou que “os cordões descendem dos cucumbis e os ranchos são derivados dos pastoris” (ENEIDA, op. cit.: 137). Ambos surgem nos bairros populares do Rio de Janeiro nas últimas décadas do século e alcançam enorme popularidade na primeira década do século XX. Dai por diante a evolução de ambos se distingue. Enquanto os cordões vão “desaparecer” rapidamente, os ranchos passarão por um processo de reinvenção, marcado pelas inovações trazidas pelo Ameno Resedá a partir de 1908, que lhes permitirão disputar a hegemonia do carnaval com as grandes sociedades até a década de 30.
III.2) Os ranchos
Tanto em Efegê (1965) quanto em Eneida (op. cit.) observa-se que há uma história dos ranchos antes do Ameno Resedá. Os primeiros ou mais famosos ranchos foram organizados nas últimas décadas do século XIX por Hilário Jovino, Tia Ciata e João Câncio. Em menos de duas décadas a nova manifestação carnavalesca passa por duas fases bem distintas. Em Moura (1983) pode-se examinar com mais detalhe a primeira fase dos ranchos carnavalescos e seus personagens principais, por sinal também fundamentais na história do samba. Os ranchos começaram a aparecer naquela parte do grande anel de bairros “degradados” da cidade, ao norte e oeste do centro histórico, reduto de imigrantes, trabalhadores pobres, onde surgiram o Morro da Favela, o porto e a estação ferroviária central, lugar de comunidades como a dos negros baianos, cuja visibilidade levou para aqueles setores a denominação de “a pequena África do Rio de Janeiro”. A história dos ranchos se encontra nestes bairros, segundo conta um dos seus pioneiros, Hilário Jovino, de origem pernambucana mas criado na Bahia, donde emigrou para o Rio, em 1872, num depoimento ao Jornal do Brasil de 18 de janeiro de 1913.
Quando cheguei da Bahia (...) já havia
um rancho formado. Era o Dois de Ouro, que estava instalado no Beco João Inácio
n.º 17. Ainda me lembro, o finado Leôncio foi quem saiu na burrinha. Vi e francamente
não desgostei da brincadeira, que trazia recordação de meu torrão natal; e,
como residisse ao lado, (...) fiz-me sócio e depressa aborreci-me com alguns
rapazes e resolvi então fundar um rancho (...). Fundei o Rei de Ouro que deixou
de sair no dia apropriado, isto é, a 6 de janeiro, porque o povo não estava
acostumado com isso. Resolvi então transferir a saída para o carnaval (cf.
MOURA, op. cit.: 59).
Embora desta parte de seu depoimento se possa deduzir que o Rei de Ouro tenha sido fundado quando Hilário ainda era recém chegado da Bahia, a realidade é que ele mesmo, posteriormente, esclareceu em entrevista dada a 27 de fevereiro de 1931, que aquele rancho só foi criado duas décadas depois, isto é, em 6 de janeiro de 1893 (ibid.). Aliás, nas duas oportunidades ele refere-se ao fato de que na Bahia os ranchos de reis saíam no dia 6 de janeiro e que o “povo [do Rio] não estava acostumado com isso”, o que o obrigou a transferir a saída de seu rancho para o carnaval. Na realidade, tanto naquela época como até hoje, no Rio, no Sudeste e no Brasil de forma geral, os ranchos de reis continuam a sair em 6 de janeiro. Assim, o nascimento dos ranchos carnavalescos é o resultado do deslocamento da apresentação de certos ranchos dos dias de Reis para o carnaval. Inovação que já vinha em curso e à qual Hilário se submeteu e que segundo ele mesmo, conforme artigo do Jornal do Brasil de 28 de fevereiro de 1911, era necessário porque, ao contrário da Bahia, no Rio de Janeiro era proibido usar fantasia nos ranchos que saiam no dia de reis (cf. EFEGÊ, op. cit.: 82, 83).
O deslocamento e a realocação de antigas festas e manifestações no calendário é uma recorrência na história das festas. O calendário cristão se adequou, aderiu, recobriu calendários pagãos e, do mesmo modo, os africanos se apropriaram do calendário cristão para continuarem a praticar os rituais de seus deuses no Brasil. Tais deslocamentos quase sempre decorrem de uma situação de força, como ocorreu também no caso da formação dos ranchos. Como observou Moura (op. cit.: 59):
As origens próximas dos ranchos com os
pastoris, sua ligação com a festa natalina cristã caracterizada pela saída no
dia de reis, e a forma dionisíaca com que o negro se apropria das festas
católicas, provoca protestos e interdições que teriam como conseqüência o
deslocamento das principais festas processionais negras para o tempo desinibido
do Carnaval, e sua definitiva profanização.
Estamos de acordo com a
explicação geral quanto às perseguições sofridas por estas manifestações, temos
porém um problema com dois supostos nela embutida. O primeiro é considerar que
no carnaval haveria menos pressão dos setores ilustrados sobre os grupos e
festividades populares. Que tal deslocamento das festas processionais negras
para o Carnaval teriam ocorrido porque tratava-se de um “um tempo desibinido” e
ali não existiriam as mesmas interdições à cultura popular que progressivamente
passaram a vigorar nas festas religiosas. Entretanto, como vimos, se há uma
esfera que os condutores da modernização no Rio de Janeiro estiveram
preocupados em conquistar desde o principio foi o carnaval. O segundo suposto é
a atribuição da forma dionisíaca ao negro como se fosse um patrimônio étnico, o
que inspira certos estudioso a imaginar a existência superorgânica de uma
cultura afro-brasileira.
Não havia, dificilmente haveria, um território tranqüilo no carnaval carioca do século XIX que pudesse abrigar festividades praticadas por grupos populares, fossem elas de origem negra, como os ranchos e os cordões, fossem de origem portuguesa, como o entrudo ou o Zé Pereira. Se a simples carnavalização dos ranchos de reis fosse suficiente para explicar a trajetória dos ranchos, deveria também ter garantido aos cordões idêntico destino. Resta explicar então o que ocorreu com os ranchos que os distanciará dos cordões.
Já nos referimos que há uma fórmula explicativa que afirma que “os ranchos são cordões mais civilizados”, isto quer dizer: eram ritualmente mais complexos, sobretudo depois do Ameno Resedá, quando passam a utilizar elementos e códigos mais próximos da cultura oficial; como, por exemplo, desfilando num ritmo como a marcha-rancho, restringindo ao máximo os instrumentos de percussão e valendo-se largamente daqueles de sopro e de cordas. Por outro lado, os elementos herdados pelos ranchos carnavalescos foram frutos de larga elaboração nos ranchos de reis, que estão vivos até hoje. Por exemplo, a figura de mestres de harmonia, de canto e da coreografia têm sua origem nos ranchos de reis. Não foram os pioneiros dos ranchos carnavalescos, como Hilário Jovino, que inventaram estas formas de organização do cortejo. Ao contrário do que este sugere, em entrevista ao cronista carnavalesco Vagalume, porta-bandeira, mestre sala, batedores etc., por pertencerem a folias de reis, eram bastante conhecidos no Rio de Janeiro.
Naquele tempo o carnaval era feito pelos
cordões de velhos, pelos Zé Pereiras e pelos dois cucumbis da Rua João Caetano
e Rua do Hospício (atual Buenos Aires). O Rei de Ouro, meu Vagalume, quando se
apresentou com perfeita organização de
rancho, foi um sucesso! Nunca se tinha visto aquilo, aqui no Rio de Janeiro:
porta bandeira, porta machado, batedores etc. (cf., MOURA, op. cit.: 59).
Em seu depoimento,
Hilário Jovino não esqueceu de dizer que o Rei de Ouro saiu às ruas
perfeitamente licenciado pela polícia, permissão obtida graças à intermediação
de amigos policiais e jornalistas. E tem razão Moura ao observar que aí estava
uma certa inovação, ou pelo menos “um principio de realidade”, o fato de seus
líderes passarem a cultivar com mais cuidado suas relações com o mundo oficial
e a imprensa, já que aí está uma das chaves de sua vitoriosa trajetória. Os
ranchos eram herdeiros de uma tradição do mundo agrário, colonial e da
escravidão. A questão que agora se colocava era como seus sujeitos celebrantes
poderiam, em condições inéditas - no urbano, na sociedade moderna, liberal,
tecnológica e cada vez mais capitalista -, negociar suas práticas e propostas
festivas com o poder e a sociedade em geral. E dentro desta estratégia estavam
a busca de alianças, financiamento, publicidade, solidariedade e outras
relações que garantissem a sua legitimidade. E não se pode duvidar da eficácia
desta estratégia e da posição de Hilário Jovino dentro da ascensão dos ranchos,
quando ele recorda, em sua entrevista de 1931, que o Rei de Ouro foi recebido
em 1894 no Palácio do Itamarati pelo Marechal Floriano, então Presidente da
República. Aliás, já em plena segunda fase da história dos ranchos, o Marechal
Hermes, igualmente Presidente da República, convidou o Ameno Resedá a visitá-lo
no Palácio Guanabara, em 26 de fevereiro de 1911.
Contudo, esta não foi uma estratégia exclusiva
dos ranchos e das quais os cordões não lançaram mão. Como vimos, eles também se
organizaram sob a forma de clubes, conseguiram licença oficial para 200 grupos
e seu prestígio público foi suficiente para que em 1906 a Gazeta de Notícias
promovesse o primeiro concurso entre os cordões da cidade. Concurso que Eneida
(op. cit.) afirma, de forma vaga, ter se repetido nos anos seguintes e do qual
João do Rio foi sempre membro da comissão julgadora. Inclusive será neste mesmo
concurso, em 1908, que o Ameno Resedá fará sua impactante estréia.
Os cordões também tinham seus defensores
letrados, seu cortejo ritual era complexo e tampouco eram “menos civilizados ou
disciplinados que os ranchos”. Já em 1897, Mestre Valentim, um líder e
organizador de muitos cordões, orientou os membros do Prazer da Lua, do Morro
de São Carlos, a obterem junto a Chiquinha Gonzaga a confecção da célebre
marcha “Abre Alas”. Henrique Bernadelli ajudou na concepção de muitos
estandartes para diversos cordões, demonstrando que estes não eram impermeáveis
ou incapazes de compreender e selecionar valores e elementos artísticos que
vinham dos “de cima” (SOIHET, op. cit.: 74, 75). O que então explicaria
trajetórias tão distintas?
O fim súbito dos
cordões, ou melhor, seu progressivo asfixiamento no principio da década de
1910, foi, em grande parte, resultado da onda modernizadora e repressora que se
seguiu à Reforma Passos, que não só jogou a pá de cal em velhos foras-da-lei
como o entrudo e o Zé Pereira, mas também perseguiu ferozmente os ranchos e os
cordões, que antes do Ameno Resedá eram tidos e havidos como parecidos. Não é
de se estranhar que o primeiro concurso do qual o Ameno Resedá participou tenha
sido a “Festa dos Cordões”, organizado pela Gazeta de Notícias (EFEGE, op.
cit.: 93, 94). Afinal de contas os ranchos se tornaram “cordões mais
civilizados”, antes eles eram confundidos com os cordões e, portanto, também um
alvo das atitudes repressoras amplamente demonstradas por Soihet. No nosso
entender, o que houve de modo específico com os cordões foi a sua “satanização”
através de sua associação com a violência, como hoje se faz com os bailes funk
e muitas vezes aconteceu com o samba e as escolas de samba.
A satanização dos
cordões faz parte daquela ofensiva desencadeada contra as classes populares, da
modernização que atinge seu clímax com a Reforma Passos, que depois de ter
prendido e deportado para o Acre populares envolvidos com a Revolta da Vacina,
expulsado centenas de famílias dos bairros centrais que moravam em cortiços
condenados à demolição para dar lugar aos bulevares, passaram a perseguir de
forma mais sistemática as festas, crenças e manifestações das classes
populares. Já em 1904 Passos investia contra o entrudo. De forma geral o violão
e a modinha foram transformados em símbolos de vadiagem. A simples posse de um
pandeiro poderia ser interpretada como indício suficiente de vadiagem que
justificava a prisão. A igreja passou a seguir a doutrina da romanização e
promoveu sérios cerceamentos à religiosidade popular, como ocorreu com os
negros que participavam da Festa da Penha,
a polícia cultivava uma rotina de provocações e arbitrariedades que
potencializava a extensão dos conflitos. Contra os pais de santo e as seitas
religiosas afro-brasileiras foi desencadeada uma verdadeira inquisição e, no
carnaval, chegou-se mesmo ao requinte de proibir, em 1909, a participação dos
tradicionais grupos de índio que desfilavam à frente dos cordões e dos ranchos
desde o tempo dos cucumbis (SEVCENKO, 1983: 32, 33).
Apesar disso, os cordões
não morreram. Quando puderam e quiseram se transformaram em ranchos e quando
não havia tal alternativa simplesmente abandonaram a designação cordão e
passaram a se denominar bloco, o que de modo algum significou o fim das
arbitrariedades, provocações e violências que se prolongaram pelo menos até
estas agremiações se metamorfosearem em escolas de samba no final dos anos
vinte. Um marco na história do desaparecimento dos cordões é, paradoxalmente, a
fundação do Cordão do Bola Preta, em 31 de dezembro de 1918, um clube
carnavalesco que existe até hoje, muito bem instalado em um andar inteiro de um
prédio ao lado do Teatro Municipal. Tal percurso demonstra evidentemente que o
Bola Preta nunca foi de fato um cordão, já que no artigo primeiro de seus
estatutos aprovados em 1926 está escrito que “é sociedade recreativa e tem por
objetivo único manter a tradição dos antigos cordões”, e seu parágrafo único
prevê que como seu objetivo é “cuidar de manter tais tradições” a designação
cordão jamais poderá ser alterada, pois isto “implicará na dissolução do Bola
Preta (ENEIDA, op. cit.: 133).
O que veio a distinguir
os ranchos dos cordões foram certas contribuições relativas ao processo ritual
e o aumento do luxo que grupos de classe média levaram para os desfiles dos
ranchos e cordões, com o aparecimento do rancho Ameno Resedá, em 1908. Estes
novos padrões estéticos estavam muito próximos daquele apresentados pelas
grandes sociedades, elementos que associados a certas inovações vão permitir
inclusive que os ranchos disputem com as grandes sociedades a hegemonia do
carnaval oficial. O Ameno Resedá foi um clube majoritariamente formado por
funcionários públicos de baixo escalão que faziam parte desses setores da
classe média do Rio de Janeiro. Mas entre seus admiradores e colaboradores mais
assíduos estiveram Paulo de Frontim, Arnaldo Guinle, patrono do Fluminense
Futebol Clube, Oswaldo Gomes, diretor do Fluminense, e Coelho Neto e família
que, diversas vezes, compareceu a eventos em sua sede no bairro do Catete.
Seu primeiro desfile na “Festa dos Cordões” de 1908, organizado segundo o enredo corte egipciana, foi surpreendente. A figura do artista profissional contratado para conceber o desfile ou parte dele a partir de um enredo - o que hoje se chama carnavalesco - foi uma das inovações que apareceram logo no início. O caricaturista, Amaro Amaral fez os croquis dos primeiros conjuntos vitoriosos. Em 1914, ano em que, pela primeira vez, alcançou a distinção de desfilar ao lado das grandes sociedades, passando também a utilizar carros alegóricos, contou com a contribuiçao de Kalixto Cordeiro na idealização e confecção do cortejo (EFEGÊ: op. cit.: 106). Mas já em 1908 as fantasias eram faustosas, confeccionadas com esmero e tecidos finos, caracterizando magnificamente os diversos personagens de destaque. Um estandarte ricamente bordado evoluía graciosamente diante do numeroso cortejo. Uma das maiores inovações estava em seu conjunto musical formado por mais de duas dezenas de músicos profissionais de gabarito, aos quais algum tempo mais tarde veio juntar-se Sinhô, o Rei do Samba, que ali foi diretor de harmonia. Em sua estréia o grupo executou um variado repertório composto de quatorze marchas, acompanhado por um coral em que se alternavam vozes masculinas e femininas perfeitamente ensaiadas sob a regência de um maestro, que cantavam as marchas como hinos da vitória.
A orquestra, o coral, o luxo das
fantasias, a figuração do enredo e, sobretudo, a exata coordenação de todos
esses valores artísticos para se obter resultado total imponente, era uma
inovação deslumbrante e arrebatadora. As agremiações co-irmãs reunindo duas ou
três dezenas de participantes, pobres de vestuário, sem subordinação a enredo
ou a qualquer motivo e, principalmente, sem força musical sentiam-se
derrotadas. Seus cânticos eram marcados apenas por batidas compassadas de
castanholas, pandeiros, tamborins, e outros instrumentos rudimentares que
faziam nada mais que ritmo e percussão ( EFEGÊ, op. cit.: 94).
A
sofisticação musical do Ameno Resedá chegou ao ponto de adaptar para o ritmo da
marcha-rancho trechos de óperas e operetas como “O Guarani”, de Carlos Gomes;
“La Boheme”, de Puccini; “Geisha”, de Sidney Johnes; pondo-lhes versos
relativos aos enredos que eram cantados pelo coral. Efegê afirma que entre as
mais revolucionárias inovações trazidas pelo Ameno Resedá estava a
marcha-rancho, executada por exímios músicos, em formações onde predominavam
instrumentos de sopro e de corda, superando aqueles “instrumentos rudimentares
que nada faziam mais que ritmo e percussão”.
Por outro lado, aproveitando para pontuar nossa discussão, o valor que se deu ao ritmo e à percussão dos cordões mostra que, em 1908, já poderíamos ser o “país do carnaval”, mas ainda não éramos o país do samba. Esta percepção torna mais interessante ainda a apreciação da revolução que principiará exatos 20 anos depois, quando, de ranchos e blocos dos quais começam a surgir as escolas de samba, seus sambistas decidem reabilitar o modelo de orquestra de percussão dos cordões, banindo os mesmo instrumentos de sopro que fizeram a distinção dos ranchos. Com isto estes sambistas consolidarão uma formulação rítmica original - o samba moderno -, alcançando sua inquestionável identidade. Quando os pioneiros das escola de samba retomaram a orquestra exclusivamente de percussão, tão marcante dos cucumbis e dos cordões, estavam reinventando sua própria tradição, o que esmaece mais um vez aquela idéia de que há no comando de processos como este uma essência e tradição, pois, muito pelo contrário, há um intenso processo de troca, de intercâmbios, de revalorizações, de negociações e de decisões dos “sujeitos celebrantes”.
As transformações de 1908 não significam que os ranchos se tornaram um patrimônio exclusivo destes segmentos medianos, pois grupos mais populares continuaram a participar dos desfiles e concursos, alcançando sempre lugares destacados naqueles certames. Como observou Soihet (op. cit.: 91, 92), o Recreio das Flores, rancho da chamada Resistência, sindicato dos trabalhadores do porto que congregava grande contigente de negros e imigrantes, já fazia sucesso em 1912 pela qualidade de seus enredos e pela organização imprimida pela liderança de Antônio Infante, o Antoniquinho, um estivador. A trajetória do Recreio das Flores marca a historia dos ranchos por, dentre outros feitos, ter apresentado em 1920 um desfile baseado na ópera “Aída”, num espetáculo “pleno de arte, luxo e bom gosto” que foi saudado como “uma verdadeira ópera ambulante”.
A interpenetração cultural era a tônica
do espetáculo: uma agremiação predominantemente negra, tendo o enredo pautado
uma manifestação erudita - a ópera de Gisusepe Verdi -, trazida para a
agremiação por um trabalhador imigrante espanhol que do “alto das torrinhas do
Teatro Municipal assistia às óperas, comprava e estudava seus libretos, para
fazer com que o pessoal da estiva pudesse brilhar no carnaval” (ibid.)
A história dos ranchos é
longa e multifacetada, escapando às possibilidades e limites deste trabalho
percorrê-la em seu todo, porém, ainda há alguns de seus detalhes que interessam
às escolas de samba: como por exemplo a questão do uso dos temas nacionais em
seus enredos. Como veremos mais adiante o exclusivo uso de temas nacionais nos
enredos das escolas de samba é um aspecto bastante controvertido e geralmente
discutido como algo inédito dentro da história do carnaval carioca, sendo visto
como um reflexo, uma conseqüência, das correntes modernistas que valorizaram e
confundiram o nacional e o popular, do crescimento do nacionalismo e, na sua
explicação mais vulgar, atribuído a burocratas fascistas do Estado-Novo
(CABRAL, 1996: 97). Pelo menos o problema do ineditismo fica superado se
observarmos que a questão dos temas nacionais foram colocados para os ranchos,
já no principio da década de vinte por pessoas como Coelho Neto.
Os ranchos alcançaram o
lugar de “ópera ambulante” exatamente por serem capazes de apresentar um enredo
que era concebido a partir de uma ópera, de um episódio histórico, ou de uma
lenda. Como observou Modesto de Abreu em 1949, a diferença mais característica
entre os cortejos das grandes sociedades e os ranchos é que nelas vigorava uma
concepção “eclética” para suas apresentações (EFEGÊ, op. cit.: 87). Quer dizer,
elas conservaram seus “enredos” com aquele aspecto de “samba do crioulo doido”
que vimos no desfile inaugural das Grandes Sumidades Carnavalescas. Entretanto,
por outro lado, os ranchos nunca estabeleceram obrigatoriedade quanto `a
nacionalidade do enredo que deveriam desenvolver, embora tal princípio
começasse a ser defendido por Coelho Neto na década de 20.
Num artigo publicado no
Jornal do Brasil de 23 fevereiro 1923, Coelho Neto manifestou seu tédio com as
grandes sociedades, dizendo que as alegorias dos Democráticos, Fenianos e
Tenentes se tornaram “sediças, reclamavam modernização. (...) Enfim ... aí estão os ranchos para
estimular os clubes que poderão, querendo, dar uma nova feição ao carnaval”.
Coelho Neto compara os ranchos aos mergulhadores do Oceano Índico que buscam em
sua profundezas ostras onde estão pérolas que serão transformadas em jóias. “É
o que estão fazendo os foliões dos ranchos: mergulham na tradição, digamos no ‘folclore’,
e trazem à tona, não só a poesia como a música. Poesia e música de nossa gente,
da nossa raça, para que os outros as aperfeiçoem e lhes dêem brilho” (EFEGÊ,
op. cit.: 90).
Pelo menos em termos de um nacionalismo bem
estreito e oficial, o Ameno Resedá entendeu o recado ao pé da letra, pois em
1924, uma semana antes do carnaval, o Jornal do Brasil anunciou seu enredo,
“Hino Nacional”, concebido e dirigido pelo desenhista A. Pacheco. Era de fato
uma inovação a julgar pelos enredos apresentados por alguns de seus
concorrentes:
Arrepiados: “Últimos dias de Pompéia”
Caprichosos da Estopa: “Mi-carême”
Cruzeiro do Sul: “Cruzeiro do Sul”
Flor do Abacate: “Rainha de Sabá”
Miséria e Fome: “Lohengrin”
Estrela do Paraíso: “Walkírias”
O êxito dessa primeira tentativa não foi como o esperado, ficando o primeiro lugar com o Flor do Abacate e o Ameno Resedá em terceiro lugar. Seu desapontamento com os critérios empregados pela comissão julgadora leva a que Amadeu de Vasconcelos, primeiro secretário do rancho, escrevesse a Coelho Neto, em carta aberta ao Jornal do Brasil, solicitando que se pronunciasse sobre o resultado do concurso. Em suas considerações Vasconcelos afirma que o Ameno Resedá havia acolhido a sugestão e desafio de mais uma vez inovar o carnaval, exibindo um tema de difícil concepção como o hino nacional, que seus competidores se limitaram a desenvolver temas tradicionais, com personagens conhecidos e mais fáceis de serem representados, “(...) pois não seria preciso, por exemplo, mais do que adaptar ao préstito mais fotografias de diversos filmes já exibidos em nossos cinematógrafos, além da vasta literatura que há a esse respeito, em tudo favorecendo a quem tal tema quisesse enfrentar” (cf. EFEGÊ, op. cit.: 51).
Coelho Neto, detentor de uma opinião respeitável na matéria não desgostou deste apelo público, ficou lisonjeado, mas preferiu não tomar partido entre julgadores e julgados, todos conhecidos seus, e alegou não poder “emitir juízo sobre os ranchos” porque simplesmente não havia saído de casa durante o carnaval. Por isto ele não saberia dizer:
(...) se foi
realizado com riqueza e gosto e em
conjunto numeroso, sei, porém, que era brasileiro, fundado em motivo
difícil de ser apresentado em préstito, mas de intenção nobilíssima e edificante. É bom que o Ameno Resedá
iniciasse a reação com o Hino, que é o canto de marcha da Pátria. Se o júri não
lhe conferiu o primeiro prêmio, não deixou de louvar a idéia e certo estou de
que, no ano próximo, o Ameno Resedá terá consolador triunfo vendo o seu exemplo
imitado, com o que não só lucrarão os ranchos, tendo fartas novidades a
explorar, como o povo que aprenderá alegremente, em espetáculos artísticos, a
amar o Brasil através da poesias de suas lendas, dos episódios da sua história
e dos feitos de seus heróis. Os precursores semeiam, não colhem. Este ano foi o
da sementeira, a colheita virá depois...O primeiro passo foi dado e, já agora,
ninguém poderá disputar a gloria de haver norteado pelo civismo as suas festas
carnavalescas.
Na realidade, faltavam
muitos passos para que as agremiações carnavalescas viessem a adotar o
princípio dos temas nacionais. Será necessário esperar a chegada das escolas de
samba que tomarão como sua a missão de representar as coisas nacionais. Tal
demora não se deu pela falta da pregação de Coelho Neto que prosseguiu pelos
anos seguintes em defesa dos temas nacionais para os enredo dos ranchos, como
em fevereiro de 1926, através de artigo no O Globo. Segundo ele, os temas
nacionais renovariam o carnaval, trazendo-lhe, todos os anos, alguma coisa
inédita, ao contrário dos desfiles das grandes sociedades, que chama de “caldos
requentados”, pela repetição dos mesmos temas e carros alegóricos (cf. SOIHET,
op. cit.: 94).
Note-se que não era só um problema de nacionalizar os enredos, pois Coelho Neto argumenta que os temas clássicos já haviam sido explorados à exaustão; o que de certa forma repetia as mesmas críticas daquela geração que renovou as grandes sociedades nos anos 80 do século XIX, justamente pelo abandono aos temas e personagens de epopéias clássicas. Como naquela situação, agora, nos anos 20, começa a surgir a demanda por um novo objeto celebrado, os temas nacionais, que foram propostos por intelectuais aos ranchos, uma empreitada que um dos seus mais ilustrados sujeitos celebrantes, o Ameno Resedá, sem sucesso tentou levar seriamente à frente. O atendimento a esta demanda só se verificará com as escolas de samba. Serão elas que darão curso a esta idéia elaborada pelos “de cima”, serão estas organizações paupérrimas e populares que saberão chegar a fórmulas que preenchessem tal necessidade.
Levando adiante esse panorama do carnaval carioca
nas primeiras décadas do século, vamos retornar a 1907 e observar o nascimento
do corso, que igualmente às grandes sociedades foi uma manifestação típica da
elite. Conta-nos Eneida (op. cit.: 151), que no final da tarde de 1 de
fevereiro de 1907, as filhas do Dr.
Afonso Pena, então presidente da República, entraram na Avenida Central em
carro do palácio presidencial. O automóvel percorreu a Avenida de ponta a ponta
e as moças passeavam jogando confetes e serpentinas no público e outros
veículos com que cruzavam. Logo após surgiram
outros carros com pessoas agindo da mesma maneira (ibid.).
Assim, de forma tão
simples e quase imediata, foi criada uma nova manifestação carnavalesca que
ganhou o apoio dos jornais e o encanto do público. Em 1910, junto com a nova
sensação que eram os ranchos, o corso já era uma grande atração aguardada
ansiosamente pelo público. Seus cortejos foram fixados no domingo gordo por ser
um dia sem grandes atrativos. Os desfiles começavam quando o sol de verão
principiava a baixar. Os carros saíam do aristocrático bairro de Botafogo,
seguiam pelo belo bulevar recentemente construído na beira-mar por Pereira
Passos, em parte implantado sobre as areias de trechos das praias do Flamengo e
de Botafogo, para chegar à Avenida Central e percorrê-la de ponta a ponta, num
trajeto em que seus abonados foliões e foliãs se entregavam a batalhas de
confetes e serpentinas, trocavam troças e flertavam.
Eneida não afirma com
precisão quando o corso terminou, mas nos anos
30 já se encontrava em crise e em 1957 ela testemunhou que não mais
existia. As razões cogitadas por esta autora para tal fim foram o aumento do número
de automóveis, a metropolização e os problemas de trânsito que passaram a
existir com o correr dos anos. De qualquer modo, ela não se dá por satisfeita
com este destino e, com humor, observa que diante do “verdadeiro corso” que já
se vivia diariamente no trânsito de Copacabana, a prefeitura bem poderia isolar
a avenida Atlântica e ali promover desfile de corso nas noites do carnaval. De
nossa parte gostaríamos de reafirmar que o corso representou uma atitude
concreta e bem sucedida das classes superiores no sentido de dominar a festa
carnavalesca. Muito do seu impacto inicial veio do fascínio despertado pelo
próprio automóvel, especialmente porque se associavam os belos carros com belas mulheres, justificando assim o sucesso
alcançado junto ao público carnavalesco por algumas décadas. Com as grandes
sociedades e os ranchos, o corso ajudou a formar aquela paisagem de um carnaval
“chic” durante a Republica Velha, tal como visto por Queiróz (op. cit.).
Com a Reforma Passos deixou de haver uma única
paisagem ou cenário carnavalesco carioca, a festa também se descentralizou e se
dividiu no centro e com o crescimento dos bairros. Dentro do centro histórico,
com o advento da Reforma Passos, a Rua do Ouvidor deixa de ser o palco do
desfile das grandes sociedades, para as quais desde logo estará reservada a
larga, lustrosa e arejada Avenida Central, leito natural para o aparecimento do
corso em 1907, que logo receberá os ranchos em sua versão pós-1908, demarcando
o carnaval chic do Rio de Janeiro. Por outro lado, o crescimento do bairro da
Cidade Nova, ocupado por uma massa de imigrantes e circundado por favelas que
começavam a se formar nos morros de seu entorno, teve a conseqüência de transformar a Praça Onze em palco sagrado para
o carnaval popular das mascaradas, dos cordões, ranchos pobres e dos blocos.
Não por acaso ali ficava a casa da Tia Ciata,
centro religioso de negros baianos, da qual Donga retirou e gravou, em
1917, “Pelo Telefone”, o primeiro samba
a ser gravado em disco, razão que levou seus historiadores a concordarem que
este foi o ano do nascimento do samba moderno. Será por ali mesmo que em 1928
nascerá a escola de samba, a partir de um bloco do vizinho bairro do Estácio.
Também nos bairros mais
distantes e subúrbios, especialmente nos subcentros que se formavam, havia
carnaval com desfiles de blocos, ranchos e cordões. Tijuca, São Cristóvão,
Catete, Botafogo e Madureira tinham os seus carnavais, e até mesmo locais menos
falados, como o Engenho de Dentro, serviram de palco de situações decisivas
para história das escolas de samba. Quando Tarsila do Amaral retornou de Paris,
em 1924, trazendo em sua bagagem elementos conceituais neo-românticos que
valorizavam o primitivo, o popular, o negro e o nacional, o carnaval que
acontecia em Madureira já era julgado por seus contatos no Rio de Janeiro
suficientemente interessante. O então subúrbio revelava um Brasil que os
modernistas ansiavam descobrir e Tarsila, até ali conduzida no carnaval daquele
ano, pintou em seguida o quadro
“Carnaval em Madureira” (AMARAL, 1975: 20
).
Foi neste vasto
território que surgiram os blocos, as últimas agremiações que devemos abordar
neste período. Desde logo deve-se considerar que de todas as manifestações
carnavalescas analisadas até agora esta é a de mais difícil descrição, já que
não há um critério de unidade para identificar estes grupos. Assim, por
exemplo, o termo foi aplicado para clubes carnavalescos, cordões e ranchos.
Como já observamos “no começo houve certa mistura (...) quanto à denominação. Ora chamava-se todos cordões, ora de grupos, ora
de ranchos, ora de blocos” (ENEIDA, op. cit.: 146). Os primeiros blocos
licenciados pela polícia anotados por esta autora apareceram em 1889: o Grupo
Carnavalesco S. Cristóvão, Bumba Meu Boi, Estrela da Mocidade, Corações de
Ouro, Recreio dos Inocentes, Um Grupo de Máscaras, Novo Clube Terpsicore,
Guarani, Piratas do Amor, Bendengó, Zé Pereira, Lanceiros, Guaranis da Cidade
Nova, Prazer da Providência, Teimosos do Catete, Prazer do Livramento, Filhos
de Satã e as Crianças de Família da Rua Paulino Figueiredo.
As denominações
refletiam distintos lugares, gostos, corporações profissionais, grupos de
vizinhança, nível de renda, etário etc., enfim, uma diversidade de variáveis
que torna difícil definir o que era então um bloco. Pelo que Eneida informa, a
era dos cordões também poderia ser chamada de “era dos blocos”, pois ela afirma
que em 1896 e 1898 ocorreram centenas de licenciamentos de blocos pela polícia.
E dez anos depois sua importância e popularidade seguiam notáveis no carnaval
carioca, haja visto que em 1908 o Ameno Resedá faz sua estréia na Festa dos
Cordões. Mas é justo a partir deste ano que as trajetórias de ranchos e cordões
vão divergir. Enquanto os primeiros foram admitidos no carnaval chic da Avenida
Central, os outros passaram a ser perseguidos e associados de forma satânica à
violência e distúrbios, de tal modo que ao longo da década de 1910 os cordões
se converteram em ranchos, ou simplesmente passaram a adotar denominação de
blocos, grupos, conjunto e clubes.
O abrupto
desaparecimento dos cordões sugere uma estratégia de sobrevivência, pois deve
ter havido de fato um processo de renomeação destas organizações populares, um
diversionismo que procurava deslocar a onda repressora desencadeada contra as
manifestações populares, constrangimento compreensivelmente reanimado com o
triunfalismo que se seguiu à Reforma Passos. Através de sua renomeação
procuravam fugir de um processo de satanização que sempre os associava à
violência e bestialidades, como hoje se faz com os funkeiros e também se fez
com os sambistas e macumbeiros.
Até 1908, blocos,
cordões e ranchos desfilavam com um grupo de índios, uma tradicional reverência
dos negros dos cucumbis aos primeiros habitantes da terra, que além desta função
simbólica eram constituídos por jovens e homens suficientemente fortes para
exercer as funções práticas de “batedores” do cortejo, o que lhes valia também
a má fama de desordeiros, já que eram os primeiros a se envolverem em eventuais
tumultos. Assim, a medida oficial para coibir a violência no carnaval de 1909
foi simplesmente proibir o desfile de grupos de índios, estivessem eles em
blocos, cordões ou ranchos. Dentro da lógica repressora do momento, mais que os
próprios cordões era preciso antes de mais nada eliminar os índios do carnaval,
para não falar naqueles que viam na eliminação dos índios reais um inequívoco
sintoma de progresso do país (SEVCENKO, op. cit.: 35).
Em 1914, a pressão que
forçava os cordões a se transformarem em blocos aflorou mais uma vez, com a
negativa do prefeito e general Bento Ribeiro em liberar verbas previstas para o
subsídio de grupos carnavalescos suburbanos. Tal subsídio fazia parte de
recurso autorizados para gastos com o carnaval “urbano, suburbano e rural” e,
mesmo sob protestos do Jornal do Brasil, Bento Ribeiro não liberou a parte
correspondente ao subúrbio, sob a alegação de que ali estavam “os perigosos
cordões”.
Neste contexto foi natural que os grupos carnavalescos se assumissem cada vez mais enquanto blocos, embora continuassem no essencial com o mesmo ritual dos cordões. Como observou João do Rio (op. cit.:):
É verdade que o pessoal não mudou muito,
nem na caracterização, nem nos cantos, nem na música. Mas o fato é que os
cucumbis, tão originais, e os Vassourinhas precursores, quem diria?
desapareceram, como desapareceram os velhos. Mas a instituição dos cordões
ficou, embora de novo etiquetada com o título de clubes...A herança ficou e os
herdeiros gozam-na valentemente, animando com seus batuques e as suas trovas ingênuas os nossos dias de
troça.
É provável que esta estratégia tenha contribuído
muito para o desenvolvimento continuo e generalizado dos blocos porque dentro
deles os cordões seguiam vivos. Neste sentido, Sohiet (op. cit.: 83) observou
que no carnaval de 1922 o centro da cidade foi invadido por uma enxurrada de
cordões que com uma barulhenta e infernal zabumbada saudaram o velho e
desaparecido Zé Pereira, para total desgosto e horror daqueles que pensavam ter
deixado tais manifestações no passado. Na realidade, mais que portadores do
passado, os blocos naqueles anos já começavam a projetar o futuro do carnaval,
pois será de um deles, o Deixa Falar, que surgirá em 1928 a primeira formulação
de uma escola de samba.
1) Os
limões de cheiro eram esferas ocas feitas de cera, nas quais se introduziam por
um pequeno orifício água perfumada. Após esta operação as esferas eram vedadas
com cera derretida. A preparação de tais projéteis ocupavam a quase todos nas
semanas que antecediam os dias de entrudo. Aos homens e rapazes cabiam a tarefa
de derreter a cera e colocar o líquido nos moldes, que depois eram preenchidos
com água perfumada pelas mulheres.
2)
Recentemente Burke (1996) chamou atenção para o fato de paradas e desfiles de
carros alegóricos serem comuns nos carnavais de Florença e Nuremberg, no século
XVI, de modo que a utilização desses carros pelas grandes sociedades a partir
dos anos 80 foi uma complemento do modelo inspirador e não o seu
aperfeiçoamento. Vieira Fazenda (1921: 110), porém, já havia assinalado que não
foi através das grandes sociedades que se viu pela primeira vez carros
alegóricos em festas no Rio de Janeiro. Neste assunto a “prioridade” é do
tenente agregado Antônio Francisco Soares que, em 1786, por ocasião dos
festejos pelo casamento do príncipe D. João e da princesa D. Carlota Joaquina,
foi incumbido pelo vice-rei, Luiz de Vasconcelos, de construir cinco carros
alegóricos utilizados nas paradas comemorativas. Os carros alegóricos foram
construídos na “casa do Trem”, sendo dedicados a Vulcano, Júpiter, Baccho,
Mouros e para as Cavalhadas Sérias. Eram engenhocas complexas, o carro de
Vulcano, por exemplo, tinha um vulcão com o cume em chamas e era puxado por um
“carro com uma enorme serpente vomitando chamas pela boca movendo a cabeça,
mãos e pés com uma naturalidade que parecia viva”.
3) Por
“realismo grotesco” Bakhtin (op. cit.: 23, 24) entende o sistema de imagens e a
estética característica da cultura cômica popular, traço que a distingue
frontalmente do classicismo. No realismo grotesco o princípio material e
corporal aparece sob a forma universal da festa utópica. Tanto o cósmico, o
social e o corporal estão ligados indissoluvelmente em uma totalidade viva e
indivisível que os coloca no mesmo plano. “O princípio material e corporal é
percebido como universal e popular, e como tal, se opõe a todo isolamento e
confinamento em si mesmo, a todo caráter ideal ou abstrato de expressão
separada e independente da terra e do corpo”. Por esta razão seu portador não é
nem o indivíduo burguês nem o ser biológico, mas o povo. Daí o elemento
corporal ser tão abundante, magnífico e exagerado, enquanto o elemento
espiritual é objeto de um rebaixamento e degradação. “O princípio material e
corporal é o princípio da festa, do banquete, da alegria”, e estes aspectos são
marcantes na literatura e na arte do Renascimento, estando presentes em
Rabelais, Cervantes, Shakespeare e Bocaccio.
4) Píndaro, poeta lírico grego (518 a.C.- 438 a.C.), aristocrata, aperfeiçoou cantos corais que celebravam as vitórias nas competições esportivas elogiando atletas, patrocinadores e deuses através de metáforas mitológicas. “A partir dessa forma, desenvolveu-se a ode pindárica, composta de estrofe, antiestrofe e epodo, gênero muito usado pelos poetas ingleses dos séculos XVII e XVIII (cf. Enciclopédia Larrousse, 1995: 4609).
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