Revista geo-paisagem (on line)

Ano  7, nº 14, 2008

Julho/Dezembro de 2008

ISSN Nº 1677-650 X

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ADAPTABILIDADE: UM PARADIGMA CRUCIAL

 

CARLOS SANTOS[1]

herodoto@unir.br

 

RESUMO

 

Este texto discute sucintamente o processo de adaptação humana ao planeta Terra, buscando enfatizar os impactos antrópicos ao meio ambiente a partir das próteses criadas pelo que se denomina de exossomatismo. A tônica é que a parafernália de objetos (próteses) gerada por esse processo já compromete a própria espécie. Assim, é mister repensar-se o modo como a adaptabilidade humana ao planeta se dá. 

 

Palavras-chave: adaptação – antropia – exossomatismo – simbiose.

 

 

ABSTRACT

 

This text discusses in detail the processo of human adaptation to the Planet Earth. We emphasize the anthropic impacts to the environment based on prothesis created by the so called exosomatism. The point is that the several objects, such as prothesis generated by these process influences on the very species. Thus it is necessary to rethink the way how the human adaptability to planet ocurr.

 

Key word: adaptation – antropic – exosomatism - symbiosis .

 

 

Apresentação

 

 

O processo de exossomatismo, inerente à condição humana, é a base de procedimentos/comportamentos como hierarquias, ordenamentos, diferenciação social, divisão de trabalho, luta de classe, enfim, pode-se considerá-lo como mecanismo central dos estágios civilizatórios da humanidade. Destarte, todas as formas de relação possuem algum grau de exossomatismo. Isto é, este conceito pode ser considerado como a raiz do poder.

 

O exossomatismo é uma forma de adaptação inconsciente/consciente do ser humano às condições ambientais. Adaptação (do latim adaptacione), biologicamente falando, é o processo pelo qual os indivíduos (ou as espécies) passam a desenvolver para viver em determinado ambiente. Isto implica em uma adaptação evolutiva face as mutações e recombinações gênicas. Isto é, estabelece-se um quadro de seleção natural. No caso individual, pode ser considerada como uma adaptação somática porquanto resulta de uma modificação não hereditária, em resposta a algum fator do meio. Essa adaptação somática, no entanto, pode ser estendida à espécie. Ela transcende o indivíduo por ser viabilizada através de próteses.

 

Tais instrumentos podem ter um uso coletivo. Enquanto construtos utilitários, projeções de concepções mentais/simbólicas/sociais em resposta a desafios ambientais, podem ser considerados como meméticos[2]. Ou seja, estruturas culturais que condicionam seus utilizadores ao mesmo tempo que facultam o acomodamento ambiental tanto do indivíduo como do coletivo. Nascem como próteses mentais na forma de símbolos que depois se concretizam em construtos materiais, em objetos palpáveis, engenhos que potencializam a ação humana. E que se transformam em heranças culturais/informacionais que vão fomentar saltos tecnológicos mais ousados.

 

 

Tecnicidade e Adaptação

 

A tese que perpassa a argumentação de Dawkins em seu livro sobre o egoísmo genético serve como analogia para o comportamento humano hoje perante o planeta. A parafernália tecnológica engenhada pelo homem atesta exatamente o seu afã em salvaguardar sua espécie em detrimento das outras. E mais, se por conta desse comportamento a vida no planeta pode ficar ameaçada ele pode partir para a colonização de Marte e de outros planetas. Claro que, da mesma forma que só alguns escolhidos usufruem das benesses da super exploração da natureza aqui na Terra, também só uma minoria embarcaria nessa nova arca cósmica[3].

 

A tecnicidade que marca a adaptação humana ao planeta reflete esse egoísmo genético. Mas a evolução da capacidade genética para estimular uma progressiva complexidade orgânica parece ter culminado na subjetividade e na consciência. Os artefatos jogaram um papel crucial nesse sentido. No mundo humano a ciência e a tecnologia, enquanto mediações culturais, estão revelando seus próprios limites. Pois acabaram revelando que o processo de reflexão que elas promovem desemboca numa atitude crítica em relação ao caráter da tecnicidade até agora cultivada. Crítica que coloca a questão fundamental: se há uma ditadura genética capaz de transformar o ser humano em robô, a autoconsciência humana seria capaz de superar esse marionetismo? Trocando em miúdo, somos apenas prótese dos genes?

 

 

Balizamento Ecológico

 

Simbiose (do latim symbioses calcado no grego symbíósis) que significa vida em comum é um termo que se impõe a essa altura. A grande herança da modernidade é inegável e flagrantemente o nível de conhecimento e de tecnologia que se dispõe hoje. Esse arcabouço científico permite intervenção na realidade de modo radical. Mas permite, sobretudo, o repensar dessa mesma intervenção. Como desenvolver uma mutualidade sem parasitismo? 

 

É claro que o ser humano é capaz de criar e transgredir convenções. Mas estas devem ter um fundamento lógico como, por exemplo, no caso do incesto. A lógica, no caso, é a da consangüinidade enquanto fator de comprometimento genético. O ponto é a busca de um fundamento que não possa ser burlado. Quer dizer, a força de sua lógica seja tão convincente que a sua transgressão implique em um custo-benefício extremamente negativo. A simbiose parece ser esse fundamento.

 

O impasse ecológico que se vive hoje, por conta do caráter relacional que o comportamento exossomático humano estabeleceu com a natureza, só pode ser resolvido com a cultura de uma nova mentalidade alicerçada na simbiose. Portanto a partir de um novo balizamento de caráter ecológico. Se há um determinismo genético, nos moldes de Dawkins, esse direcionamento visa a saudabilidade. E esta aflora na autoconsciência.

 

Portanto, a autoconsciência humana (veículo, na verdade, da tomada de consciência de si mesma da própria natureza) leva à descoberta da saudabilidade como a meta mais promissora de uma relação ecológica. É bom lembrar que, na verdade, para o planeta em si os impactos resultantes da ação humana são eventos como tantos outros que ocorrem como parte de sua própria dinâmica. Deixado a si mesmo, o planeta pode se refazer. A questão é a espécie humana. É sua saudabilidade que está em jogo quando alterações drásticas do meio ambiente acontecem por conta de seu comportamento.

 

 

Ecoexossomia

 

Como conciliar entropia com antropia? A discussão ambiental visa uma problemática ou se trata de uma questão? Segundo Maurício de Carvalho Amazonas (2007):

No final dos anos 60 e anos 70, a emergência do movimento ambientalista e o choque do petróleo fizeram dos recursos naturais, da energia e do ambiente em geral um tema de importância econômica, social e política, o qual pode ser chamado Questão Ambiental. Esta trouxe a crítica ao modelo de desenvolvimento econômico vigente, apontando para um conflito, senão uma possível incompatibilidade, entre crescimento econômico e preservação dos recursos ambientais, e que tal conflito, em última instância traria limites à continuidade do próprio crescimento econômico. Assim, a crítica ambientalista, surgida inicialmente nos meios científicos e ambientalistas, vai progressivamente adentrando o campo da ciência econômica, dado ser o funcionamento do sistema econômico o objeto central da crítica. Neste processo, é de grande destaque o impacto do Clube de Roma, com a publicação de "The Limits to Growth", o Relatório Meadows, de 1972. Tal trabalho aponta para um cenário catastrófico de impossibilidade de perpetuação do crescimento econômico devido à exaustão dos recursos ambientais por ele acarretada, levantando assim à proposta de um crescimento econômico "zero". O debate passa então a polarizar-se entre esta posição de "crescimento zero" - conhecida por "neo-malthusiana" - e posições desenvolvimentistas de "direito ao crescimento" (defendida pelo países do terceiro mundo), indo desaguar na Conferência da UNCED em Estocolmo em 1972. Nesta, como terceira-via, desenvolve-se a tese do Ecodesenvolvimento, segundo a qual desenvolvimento econômico e preservação ambiental não são incompatíveis, mas, ao contrário, são interdependentes para um efetivo desenvolvimento. Esta tese vem a desenvolver-se na proposição do Desenvolvimento Sustentável, que adquire sua forma mais consolidada no Relatório Brundtland de 1987 (Our Common Future), segundo a qual o Desenvolvimento deve ser entendido pela eficiência econômica, equilíbrio ambiental e também pela eqüidade social. De um modo geral, Desenvolvimento Sustentável hoje é ponto de passagem obrigatória no debate econômico, representando o ponto maior da penetração da Questão Ambiental na Economia.

Cabe fazer-se uma diferenciação entre problema e questão. Conforme Merleau-Ponty, problema é algo que envolve a lógica formal enquanto que questão tem a ver com a lógica dialética. Ou seja, os fenômenos biofísicos que envolvem o contexto ecológico constituem-se em uma problemática que a lógica formal pode dar conta. Mas os impactos antrópicos são resultantes do caráter das relações sociais empreendidas pela sociedade; mas o comportamento social envolve conflitos de interesses que só podem ser abordados, eficiente e eficazmente, pela lógica dialética. Desse modo, há uma problemática ambiental que só pode ser de fato resolvida se a dialética social for aplicada. A problemática ambiental é, na verdade, uma projeção da assimetria social. Portanto, trata-se de uma questão social. 

O aquecimento global parece ser hoje o ápice da referida problemática. Segundo o quarto relatório, bem recente, do IPCC (maio de 2007), a responsabilidade humana pela mudança climática atual é de mais de 90%. São alterações que implicam na subida do nível do mar pelo derretimento das geleiras ao longo do atual século, ameaçando as cidades litorâneas. Intensificação dos ciclones, escassez de água potável e de alimentos, afetando bilhões de pessoas. No caso da Amazônia, o aumento de temperatura fará com que a exuberante floresta se transforme em uma savana.

 

As mudanças em tela compõem um quadro catastrófico. Um autêntico cenário apocalíptico. Tal situação é indubitavelmente decorrente do credo obsessivo pelo crescimento econômico a todo custo. A cultura da incrementação de crescentes percentuais do produto interno bruto (PIB).

 

Em suma, claro que por ser inerente à condição humana o comportamento exossomático não pode ser eliminado. Mas pode ser redirecionado. A exossomia humana pode adquirir um caráter ecológico. As próteses materiais resultantes desse processo podem ser inteiramente recicláveis e biodegradáveis. Assim pode-se implantar a cultura da ecoexossomia.

 

 

Uma Tentativa de Conclusão

 

A adaptabilidade portanto, sinteticamente, nos marcos deste texto, é a soma da endossomia com a exossomia. Assim, temos o planeta como âmbito do endossomatismo e o mundo como manifestação do exossomatismo. Isto é, na medida em que o processo de antropia manipula os ecossistemas naturais aumenta-se a entropia de todo o sistema. Mas essa intervenção humana é mediada pelo trabalho, ou seja, pela valoração da natureza. Tal alocação de utilidade à natureza implica no valor de uso e no valor de troca. Com a chegada da modernidade, surge uma nova relação social que transforma o produto em mercadoria. Em razão do tipo de assimetria inerente à essa nova relação social, a modalidade mercadoria ganha preponderância sobre a utilidade produto. Há então uma exacerbação da lógica instrumental. Resulta desse contexto um duplo impacto: sobre o estoque natural e sobre o tecido social. Há, em suma, a necessidade de se rever a lógica que atualmente embasa a adaptabilidade.

 

O lócus humano que hoje envolve todo o planeta e começa a se espraiar pelo sistema solar é um ambiente construído exossomaticamente. Esse construto ambiental egoisticamente exclusivista começa a colocar em xeque não exatamente o planeta em si mas o próprio ente humano. Ou, mais especificamente, parte do contingente humano. Isto é, os mais desaparelhados tecnologicamente estariam irremediavelmente condenados.

 

O paradoxo é que a tecnologia que a princípio seria a grande vilã desse processo torna-se também a maior redentora de tal drama. A nocividade da tecnologia estaria no fato de que estaríamos a reboque dela. Isto é, a produção tecnológica teria ganho uma espécie de vida própria. O processo parece ter-se tornado inercial: a tecnologia pela tecnologia.

 

Contudo, afinal, a tecnologia é crucial na mediação entre antropia e entropia. A reciclagem e a regenerabilidade é uma forma de tratamento dos outputs humanos, de modo a sintonizar a dinâmica natural com a ação humana. É, inegavelmente, um flagrante modo de se reorganizar a matriz de insumos em termos de matéria e energia. Ou seja, é possível tratar a dissipação promovida pela antropia/entropia induzindo-se tecnologicamente seu feedback[4]. Portanto, a saída é a mudança no caráter da tecnologia que se precisa. O perfil da tecnologia tem que ser, desse modo, simbiótico. 

 

 

REFERÊNCIAS

AMAZONAS, Maurício de C. Economia Ecológica. In: Boletim da ECOECO - Sociedade Brasileira de Economia Ecológica. Janeiro de 2007.

DAWKINS, Richard. The Selfish Gene. Publisher: Oxford University Press: 1976/1989

IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change. www.ipcc.ch.

LORÓ, Rafael R. Memética & Historia. V Jornada de Filosofía da Universidade Nacional de Educação a Distância. Guadalajara/Espanha. Maio de 2002.

PRIGOGINE, Ilya. O Nascimento do Tempo. Lisboa. Edições 70. 1990.

 



[1] Professor do Dep. de Geografia da Universidade Federal de Rondônia. 

[2] Em 1976 Richard Dawkins, etólogo da Universidade de Oxford, dedicava um breve capítulo de seu livro O gene egoísta a um novo conceito criado por ele: o meme. Segundo Dawkins, um meme é um módulo de informação que contagia e condiciona a mente humana, replica-se e altera seu comportamento, e provoca a propagação de seu padrão. O controle do fogo nas sociedades pré-históricas, a prática de diferentes religiões, a animosidade contra negros, muçulmanos ou judeus, as revoluções do proletariado, são exemplos de comportamentos sociais que teriam sua origem na transmissão de memes. A memética, portanto, seria a ciência que estuda os memes e seus efeitos sociais. Assim, já começam a surgir trabalhos sobre sua aplicação na biología evolutiva (Dawkins & Blackmore), na filosofía da mente (Daniel Dennett), nas ciências sociais (Francis Heylighten), na neurología (Delius), etc. (Trecho adaptado extraido de Memética e História, texto de Rafael Robles Loró, apresentado na V Jornada de Filosofía da Universidade Nacional de Educação a Distância, realizada em Guadalajara [Espanha] nos dias 10 e 11de maio de 2002.)

 

[3] As plataformas de lançamento das bases criadas pelos programas espaciais nacionais podem, nesse sentido, ser consideradas como rotas de fuga do planeta.

[4] Conforme argumenta Prigogine (1990), a entropia provoca uma liberação de elementos que irão compor estruturas mais complexas que as anteriores. Desse modo, há na verdade um aumento progressivo da complexidade e não o contrário como, a princípio, fazia crer a segunda lei da termodinâmica. É como se a cada reestruturação cada elemento comparece com um grau de sofisticação maior, propiciando, assim, um exponenciamento da complexidade.